[forum-prof] Sagan: A Arte Refinada de Detectar Mentiras
Prof. Luiz Eduardo
luizeduardo at pharma.ufrj.br
Wed Jan 5 19:33:55 BRST 2005
Recebi a msg abaixo, de uma lista sobre CIENCIA, e me pareceu que talvez
interesse aos integrantes deste Forum da UFRJ.
L.E.
>From: HOMERO <oraculo at atibaia.com.br>
>Relendo um texto de Carl Sagan, do livro O Mundo Assombrado Pelos
>Demonios, chamado A Refinada Arte de Detectar Mentiras, eu achei
>interessante para nossa discussão sobre a ciência e as imperfeições humanas.
>
>Este é um pequeno trecho:
>"Sagan: As explicações pagas de produtos, especialmente se feitas por
>verdadeiros ou pretensos especialistas, constituem uma saraivada constante
>de logros. Revelam menosprezo pela inteligência dos clientes. Criam uma
>corrupção insidiosa das atitudes populares a respeito da objetividade
>científica. Hoje, existem até comerciais em que cientistas reais, alguns
>de considerável distinção, atuam como garotos-propaganda para as empresas.
>Eles nos ensinam que também os cientistas mentem por dinheiro. Como
>alertou Tom Paine, o fato de nos acostumarmos com mentiras cria o
>fundamento para muitos outros males. "
>
>Interessante, não?..:-) Ele também separa a ciência, seu método, o
>pensamento racional, o cetiscismo, da aplicação prática e das falhas
>humanas (naturais em todos nós).
>O texto completo segue abaixo.
>Um abraço.
>Homero
>_____________________________________________________
> A Arte Refinada de Detectar Mentiras
> Carl Sagan
> Fonte: O Mundo Assombrado pelos Demônios
>
> A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas
> recebe infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que
> podem ser chamadas "ciências conforme a nossa vontade". Pois um homem
> acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele
> rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas,
> porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por
> superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que
> não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma,
> inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os
> afetos colorem e contaminam o entendimento.
> Francis Bacon, Novum organon (1620)
>
>
>
> Meus pais morreram há anos. Eu era muito ligado a
> eles. Ainda sinto uma saudade terrível. Sei que sempre sentirei. Desejo
> acreditar que sua essência, suas personalidades, o que eu tanto amava
> neles, ainda existe - real e verdadeiramente - em algum lugar. Não
> pediria muito, apenas cinco ou dez minutos por ano, para lhes contar
> sobre os netos, pô-las ao corrente das últimas novidades, lembrar-lhes
> que eu os amo. Uma parte minha - por mais infantil que pareça - se
> pergunta como é que estarão. "Está tudo bem?", desejo perguntar. As
> últimas palavras que me vi dizendo a meu pai, na hora de sua morte,
> foram: "Tome cuidado".
>
> Às vezes sonho que estou falando com meus pais, e
> de repente - ainda imerso na elaboração do sonho - sou tomado pela
> consciência esmagadora de que eles não morreram de verdade, de que tudo
> não passou de um erro horrível. Ora, ali estão eles, vivos e bem de
> saúde, meu pai fazendo piadas inteligentes, minha mãe muito séria me
> aconselhando a usar uma manta porque está frio. Quando acordo, passo de
> novo por um processo abreviado de luto. Evidentemente, existe algo dentro
> de mim que está pronto a acreditar na vida após a morte. E que não está
> nem um pouco interessado em saber se há alguma evidência séria que
> confirme tal coisa.
>
> Por isso, não rio da mulher que visita o túmulo do
> marido e conversa com ele de vez em quando, talvez no aniversário de sua
> morte. Não é difícil de compreender. E se tenho dificuldades com o status
> ontológico daquele com que ela está falando, não faz mal. Não é isso que
> importa. O que importa é que os seres humanos são humanos. Mais de um
> terço dos adultos norte-americanos acreditam que em algum nível
> estabeleceram contato com os mortos. O número parece ter dado um pulo de
> 15% entre 1977 e 1988. Um quarto dos norte-americanos acredita em
> reencarnação.
>
> Mas isso não significa que estou disposto a aceitar
> as pretensões de um "médium", que afirma canalizar os espíritos dos seres
> amados que partiram, quando tenho consciência de que a prática está cheia
> de fraudes. Sei o quanto desejo acreditar que meus pais só abandonaram os
> cascos de seus corpos, como insetos ou cobras na muda, e partiram para
> outro lugar. Compreendo que esses sentimentos poderiam me tornar uma
> presa fácil até de um trapaceiro pouco inteligente, de pessoas normais
> que desconhecem suas mentes inconscientes, ou dos que sofrem de uma
> desordem psiquiátrica dissociativa. Relutantemente, ponho em ação algumas
> reservas de ceticismo.
>
> Como é, pergunto a mim mesmo, que os canalizadores
> nunca nos dão informações verificáveis que nos são inacessíveis por
> outros meios? Por que Alexandre, o Grande, nunca nos informa sobre a
> localização exata de sua tumba, Fermat sobre o seu último teorema, James
> Wilkes Booth sobre a conspiração do assassinato de Lincoln, Hermann
> Goering sobre o incêndio do Reichstag? Por que Sófocles, Demócrito e
> Aristarco não ditam as suas obras perdidas? Não querem que as gerações
> futuras conheçam as suas obras-primas?
>
> Se fosse anunciada alguma evidência real de vida
> após a morte, desejaria muito examiná-la; mas teria de ser uma evidência
> real científica, e não simples anedota. Em casos como A Face em Marte e
> os raptos por alienígenas, eu diria que é melhor a verdade dura do que a
> fantasia consoladora. E, no cômputo final, revela-se freqüentemente que
> os fatos são mais consoladores que a fantasia.
>
> A premissa fundamental da "canalização", do
> espiritismo e de outras formas de necromancia é que não morremos quando
> experimentamos a morte. Não exatamente. Continua a existir alguma parte
> de nós que pensa, sente e tem memória. Seja o que for - alma ou espírito,
> nem matéria nem energia, mas alguma outra coisa -, essa parte pode entrar
> novamente em corpos humanos ou de outros seres, e assim a morte perde
> grande parte da sua ferroada. E ainda mais: se as afirmações do espírita
> ou canalizador são verdadeiras, temos uma oportunidade de entrar em
> contato com os seres amados que morreram.
>
> J. Z. Knight, do estado de Washington, afirma estar
> em contato com um ser de 35 mil anos chamado Ramtha. Ele fala inglês
> muito bem, usando a língua, os lábios e as cordas vocais de Knight, com
> um sotaque que me parece ser hindu. Como a maioria das pessoas sabe como
> falar, e muitas - de crianças a atores profissionais - têm um repertório
> de vozes a seu dispor, a hipótese mais simples sugere que é a própria
> sra. Knight que faz Ramtha falar, e que ela não tem contato com entidades
> desencarnadas da época plistocena glacial. Se há provas em contrário,
> gostaria muito de conhecer. Seria consideravelmente mais impressionante
> se Ramtha pudesse falar por si mesmo, sem a ajuda da boca da sra. Knight.
> Isso não sendo possível, como podemos testar a afirmação? (A atriz
> Shirley MacLaine afirma que Ramtha foi seu irmão em Atlântida, mas isso
> já é outra história.)
>
> Vamos supor que Ramtha pudesse ser interrogado.
> Poderíamos verificar se ele é quem afirma ser? Como é que ele sabe que
> viveu há 35 mil anos, mesmo aproximadamente? Que calendário emprega? Quem
> está tomando nota dos milênios intermediários? Trinta e cinco mil mais ou
> menos o quê? Como é que eram as coisas há 35 mil anos? Ou Ramtha tem
> realmente essa idade, e nesse caso vamos descobrir alguma coisa sobre
> esse período, ou é uma fraude e ele (ou melhor, ela) vai se trair.
>
> Onde é que Ramtha vivia? (Sei que fala inglês com
> sotaque hindu, mas onde é que falavam assim há 35 mil anos?) Como era o
> clima? O que Ramtha comia? (Os arqueólogos têm alguma noção do que as
> pessoas comiam nessa época.) Quais eram as línguas autóctones, e qual era
> a estrutura social? Com quem mais Ramtha vivia - com a mulher, mulheres,
> filhos, netos? Qual era o ciclo da vida, a taxa de mortalidade infantil,
> a expectativa de vida? Eles tinham controle populacional? Que roupas
> vestiam? Como elas eram fabricadas? Quais os predadores mais perigosos?
> Os instrumentos e as estratégias da caça e da pesca? Armas? Sexismo
> endêmico? Xenofobia e etnocentrismo? E, se Ramtha descendia da "elevada
> civilização" de Atlântida, onde estão os detalhes lingüísticos,
> tecnológicos, históricos e de outra natureza? Como era a sua escrita?
> Respondam. Em lugar disso, a única coisa que recebemos são homilias banais.
>
> Para dar outro exemplo, eis um conjunto de
> informações que não foram canalizadas de um morto antigo, mas de
> entidades não humanas desconhecidas que fazem círculos nas plantações,
> assim como foi registrado pelo jornalista Jim Schnabel:
>
> "Estamos muito ansiosos por essa nação pecadora estar
> espalhando mentiras sobre nós. Não viemos em máquinas, não pousamos na
> Terra em máquinas [...]. Viemos como o vento. Somos a Força Vital. A
> Força Vital do solo [...]. Viemos até aqui [...]. Estamos apenas a um
> sopro de distância [...] a um sopro de distância [...] não estamos a
> milhões de milhas de distância [...] uma Força Vital que é mais potente
> que as energias no corpo humano. Mas nós nos reunimos num nível mais
> elevado de vida [...]. Não precisamos de nome. Vivemos num mundo paralelo
> ao seu, ao lado do seu [...]. Os muros se romperam. Dois homens surgirão
> do passado [...] o grande urso [...] o mundo encontrará a paz".
>
>
> As pessoas dão atenção a essas maravilhas pueris,
> principalmente porque elas prometem algo parecido com a religião dos
> velhos tempos, mas sobretudo a vida depois da morte, até a vida eterna.
>
> O versátil cientista britânico J.B.S. Haldane, que
> foi, entre muitas outras coisas, um dos fundadores da genética
> populacional, propôs certa vez uma perspectiva muito diferente para algo
> semelhante à vida eterna. Haldane imaginava um futuro distante em que as
> estrelas se obscureceram e o espaço foi preenchido em sua maior parte por
> um gás frio e fino. Ainda assim, se esperarmos bastante tempo, ocorrerão
> flutuações estatísticas na densidade desse gás. Ao longo de imensos
> períodos, as flutuações serão o suficiente para reconstituir um Universo
> parecido com o nosso. Se o Universo é infinitamente antigo, haverá um
> número infinito dessas reconstituições, apontava Haldane.
>
> Assim, num Universo infinitamente antigo com um
> número infinito de nascimentos de galáxias, estrelas, planetas e vida,
> deve reaparecer uma Terra idêntica em que você e todos os seus seres
> queridos voltarão a se reunir. Serei capaz de rever meus pais e
> apresentar-lhes os netos que eles não conheceram. E tudo isso não
> acontecerá apenas uma vez, mas um número infinito de vezes.
>
> Entretanto, de certo modo isso não oferece os
> consolos da religião. Se nenhum de nós vai lembrar o que aconteceu desta
> vez, a época que o leitor e eu estamos partilhando, as satisfações da
> ressurreição do corpo, pelo menos aos meus ouvidos, soam ocas.
>
> Mas nessa reflexão subestimei o que significa
> infinidade. Na imagem de Haldane, haverá universos, na verdade um número
> infinito de universos, em que nossas mentes recordarão perfeitamente
> todas as vidas anteriores. A satisfação está à mão - moderada, no
> entanto, pela idéia de todos esses outros universos que também passarão a
> existir (novamente, não uma vez, mas um número infinito de vezes) com
> tragédias e horrores que superam em muito qualquer coisa que já
> experimentei desta vez.
>
> Entretanto, o Consolo de Haldane depende do tipo de
> universo em que vivemos, e talvez de arcanos, como, por exemplo, saber se
> há bastante matéria para finalmente reverter à expansão do universo, e o
> caráter das flutuações no vácuo. Ao que parece, aqueles que sentem um
> profundo desejo de vida após a morte poderiam se dedicar à cosmologia, à
> gravidade quântica, à física das partículas elementares e à aritmética
> trans-finita.
>
> Clemente de Alexandria, um dos padres da Igreja
> primitiva, em suas Exortações aos gregos (escritas em torno do ano 190),
> rejeitava as crenças pagãs em termos que pareceriam hoje em dia um pouco
> irônicos:
>
> "Estamos realmente longe de permitir que os homens
> adultos dêem ouvidos a essas histórias. Mesmo aos nossos filhos, quando
> eles berram de cortar o coração, como se diz, não temos o hábito de
> contar histórias fabulosas para acalmá-los".
>
>
> Em nossa época, temos padrões menos severos.
> Contamos às crianças histórias sobre Papai Noel, o coelhinho da Páscoa e
> a fada do dente por razões que achamos emocionalmente sadias, mas depois,
> antes de crescerem, nós os desiludimos sobre esses mitos. Por que nos
> desdizemos? Porque o seu bem-estar como adultos depende de eles
> conhecerem o mundo tal como é. Nós nos preocupamos, e com razão, com os
> adultos que ainda acreditam em Papai Noel.
>
> Sobre as religiões doutrinárias, escreveu o
> filósofo David Hume que
>
> "os homens não ousam confessar, nem mesmo a seus
> corações, as dúvidas que têm a respeito desses assuntos. Eles valorizam a
> fé implícita; e disfarçam para si mesmos a sua real descrença, por meio
> das afirmações mais convictas e do fanatismo mais positivo".
>
>
> Essa descrença tem conseqüências morais profundas,
> como escreveu o revolucionário americano Tom Paine em The age of reason:
>
> "A descrença não consiste em acreditar, nem em
> desacreditar; consiste em professar que se crê naquilo que não se crê. É
> impossível calcular o dano moral, se é que posso chamá-lo assim, que a
> mentira mental tem causado na sociedade. Quando o homem corrompeu e
> prostituiu de tal modo a castidade de sua mente, a ponto de empenhar a
> sua crença profissional em coisas que não acredita, ele está preparado
> para a execução de qualquer outro crime".
>
>
> A formulação de T.H. Huxley foi:
>
> "O fundamento da moralidade é [...] renunciar a fingir
> que se acredita naquilo que não comporta evidências, e a repetir
> proposições ininteligíveis sobre coisas que estão além das possibilidades
> do conhecimento".
>
>
> Clement, Hume, Paine e Huxley estavam todos falando
> de religião. Mas grande parte do que escreveram tem aplicações mais
> gerais - por exemplo, para as importunidades disseminadas no pano de
> fundo de nossa civilização comercial: há um tipo de comercial de aspirina
> em que atores fingindo ser médicos revelam que o produto do concorrente
> tem apenas determinada fração do ingrediente analgésico que os médicos
> mais recomendam - eles não dizem qual é o misterioso ingrediente.
> Enquanto o seu produto tem uma quantidade drasticamente maior (1,2 a duas
> vezes mais por comprimido). Por isso, comprem esse produto. Mas por que
> não tomar dois comprimidos do concorrente? Ou considere-se o caso do
> analgésico que funciona melhor do que o produto de "potência regular" do
> concorrente. Por que não tomar o produto de "potência extra" do outro
> fabricante? E eles certamente não falam nada sobre as mais de mil mortes
> por ano causadas pelo uso da aspirina nos Estados Unidos ou os aparentes
> 5 mil casos anuais de disfunção renal provocados pelo uso de
> acetaminofeno, de que a marca mais vendida é o Tylenol. (Isso, contudo,
> talvez represente um caso de correlação sem causalidade.) Ou quem se
> importa em saber quais os cereais que têm mais vitamina, quando podemos
> tomar uma pílula de vitamina no café da manhã? Da mesma forma, que
> importa saber que um antiácido contém cálcio, se o cálcio serve para a
> nutrição e é irrelevante para a gastrite? A cultura comercial está cheia
> de informações errôneas e subterfúgios semelhantes à custa do consumidor.
> Não se devem fazer perguntas. Não pensem. Comprem.
>
> As explicações pagas de produtos, especialmente se
> feitas por verdadeiros ou pretensos especialistas, constituem uma
> saraivada constante de logros. Revelam menosprezo pela inteligência dos
> clientes. Criam uma corrupção insidiosa das atitudes populares a respeito
> da objetividade científica. Hoje, existem até comerciais em que
> cientistas reais, alguns de considerável distinção, atuam como
> garotos-propaganda para as empresas. Eles nos ensinam que também os
> cientistas mentem por dinheiro. Como alertou Tom Paine, o fato de nos
> acostumarmos com mentiras cria o fundamento para muitos outros males.
>
> Enquanto escrevo, tenho diante de mim o programa da
> Whole Life Expo, a exposição anual da Nova Era realizada em San
> Francisco. É comumente visitada por dezenas de milhares de pessoas. Ali
> especialistas muito questionáveis fazem propaganda de produtos muito
> questionáveis. Eis algumas das apresentações: "Como proteínas presas no
> sangue produzem dor e sofrimento". "Cristais, talismãs ou pedras?" (Tenho
> a minha opinião.) Prossegue: "Assim como um cristal focaliza as ondas
> sonoras e luminosas para o rádio e a televisão" - o que é um erro
> insípido de quem não compreende como o rádio e a televisão funcionam -,
> "ele pode amplificar as vibrações espirituais para o ser humano afinado".
> Ou mais esta: "O retorno da deusa, um ritual de apresentação". Outra:
> "Sincronismo, a experiência do reconhecimento". Essa é fornecida pelo
> "irmão Charles". Ou, na página seguinte: "Você, Saint-Germain e a cura
> pela chama violeta". E assim continua, com milhares de anúncios sobre as
> "oportunidades" - percorrendo a gama estreita que vai do dúbio ao espúrio
> - que se acham à disposição na Whole Life Expo.
>
> Algumas vítimas de câncer, perturbadas, fazem
> peregrinações às Filipinas, onde "cirurgiões mediúnicos", depois de
> esconder na palma da mão pedaços de fígado de galinha ou coração de bode,
> fingem tocar nas entranhas do paciente e retirar o tecido doente, que é
> então triunfantemente exibido. Certos líderes de democracias ocidentais
> consultam regularmente astrólogos e místicos antes de tomar decisões de
> Estado. Sob a pressão pública por resultados, a polícia, às voltas com um
> assassinato não solucionado ou um corpo desaparecido, consulta
> "especialistas" de ESP (percepção extra-sensorial) (que nunca adivinham
> nada além do esperado pelo senso comum, mas a polícia, dizem os ESPs,
> continua a chamá-los). Anuncia-se a previsão de uma divergência com
> nações adversárias, e a CIA, estimulada pelo Congresso, gasta dinheiro
> dos impostos para descobrir se podemos localizar submarinos nas
> profundezas do oceano concentrando o pensamento neles. Um "médium" -
> usando pêndulos sobre mapas e varinhas rabdomânticas em aviões - finge
> descobrir novos depósitos minerais; uma companhia mineira australiana lhe
> adianta elevada soma de dólares, irrecuperável em caso de fracasso,
> garantindo-lhe uma participação na exploração do minério em caso de
> sucesso. Nada é descoberto. Algumas estátuas de Jesus ou murais de Maria
> ficam manchados de umidade, e milhares de pessoas bondosas se convencem
> de que testemunharam um milagre.
>
> Todos esses são casos de mentiras provadas ou
> presumíveis. Acontece um logro, ora de forma inocente, mas com a
> colaboração dos envolvidos, ora com premeditação cínica. Em geral, a
> vítima se vê presa de forte emoção - admiração, medo, ganância, dor. A
> aceitação crédula da mentira talvez nos custe dinheiro; é o que P.T.
> Barnum apontou, ao afirmar: "Nasce um otário a cada minuto". Mas pode ser
> muito mais perigoso que isso, e quando os governos e as sociedades perdem
> a capacidade de pensar criticamente os resultados podem ser catastróficos
> - por mais que deploremos aqueles que engoliram a mentira.
>
> Na ciência, podemos começar com resultados
> experimentais, dados, observações, medições, "fatos". Inventamos, se
> possível, um rico conjunto de explicações plausíveis e sistematicamente
> confrontamos cada explicação com os fatos. Ao longo de seu treinamento,
> os cientistas são equipados com um kit de detecção de mentiras. Este é
> ativado sempre que novas idéias são apresentadas para consideração. Se a
> nova idéia sobrevive ao exame das ferramentas do kit, nós lhe concedemos
> aceitação calorosa, ainda que experimental. Se possuímos essa tendência,
> se não desejamos engolir mentiras mesmo quando são confortadoras, há
> precauções que podem ser tomadas; existe um método testado pelo
> consumidor, experimentado e verdadeiro.
>
> O que existe no kit ? Ferramentas para o pensamento
> cético.
>
> O pensamento cético se resume no meio de construir
> e compreender um argumento racional e - o que é especialmente importante
> - de reconhecer um argumento falacioso ou fraudulento. A questão não é se
> gostamos da conclusão que emerge de uma cadeia de raciocínio, mas se a
> conclusão deriva da premissa ou do ponto de partida e se essa premissa é
> verdadeira.
>
> Eis algumas das ferramentas:
>
> . Sempre que possível, deve haver confirmação independente
> dos "fatos".
>
> . Devemos estimular um debate substantivo sobre as
> evidências, do qual participarão notórios partidários de todos os pontos
> de vista.
>
> . Os argumentos de autoridade têm pouca importância - as
> "autoridades" cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los no
> futuro. Uma forma melhor de expressar essa idéia é talvez dizer que na
> ciência não existem autoridades; quando muito, há especialistas.
>
> . Devemos considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa
> deve ser explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes
> pelas quais poderia ser explicada. Depois devemos pensar nos testes que
> poderiam servir para invalidar sistematicamente cada uma das
> alternativas. O que sobreviver, a hipótese que resistir a todas as
> refutações nessa seleção darwiniana entre as "múltiplas hipóteses
> eficazes", tem uma chance muito melhor de ser a resposta correta do que
> se tivéssemos simplesmente adotado a primeira idéia que prendeu nossa
> imaginação *1.
>
> . Devemos tentar não ficar demasiado ligados a uma hipótese,
> só por ser a nossa. É apenas uma estação intermediária na busca do
> conhecimento. Devemos nos perguntar por que a idéia nos agrada. Devemos
> compará-la imparcialmente com as alternativas. Devemos verificar se é
> possível encontrar razões para rejeitá-la. Se não, outros o farão.
>
> . Devemos quantificar. Se o que estiver sendo explicado é
> passível de medição, de ser relacionado a alguma quantidade numérica,
> seremos muito mais capazes de discriminar entre as hipóteses
> concorrentes. O que é vago e qualitativo é suscetível de muitas
> explicações. Há certamente verdades a serem buscadas nas muitas questões
> qualitativas que somos obrigados a enfrentar, mas encontrá-las é mais
> desafiador.
>
> . Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos na cadeia
> devem funcionar (inclusive a premissa) - e não apenas a maioria deles.
>
> . A Navalha de Occam. Essa maneira prática e conveniente de
> proceder nos incita a escolher a mais simples dentre duas hipóteses que
> explicam os dados com igual eficiência.
>
> . Devemos sempre perguntar se a hipótese pode ser, pelo menos
> em princípio, falseada. As proposições que não podem ser testadas ou
> falseadas não valem grande coisa. Considere-se a idéia grandiosa de que o
> nosso Universo e tudo o que nele existe é apenas uma partícula elementar
> - um elétron, por exemplo - num Cosmos muito maior. Mas, se nunca obtemos
> informações de fora de nosso Universo, essa idéia não se torna impossível
> de ser refutada? Devemos poder verificar as afirmativas. Os céticos
> inveterados devem ter a oportunidade de seguir o nosso raciocínio, copiar
> os nossos experimentos e ver se chegam ao mesmo resultado.
>
> A confiança em experimentos cuidadosamente
> planejados e controlados é de suma importância, como tentei enfatizar
> antes. Não aprenderemos com a simples contemplação. É tentador ficar
> satisfeitos com a primeira explicação possível que passa pelas nossas
> cabeças. Uma é muito melhor que nenhuma. Mas o que acontece se podemos
> inventar várias? Como decidir entre elas? Não decidimos. Deixamos que a
> experimentação faça as escolhas para nós. Francis Bacon indicou a razão
> clássica: "A argumentação não é suficiente para a descoberta de novos
> trabalhos, pois a sutileza da natureza é muitas vezes maior do que a
> sutileza dos argumentos".
>
> Os experimentos de controle são essenciais. Por
> exemplo, se alegam que um novo remédio cura uma doença em 20% dos casos,
> temos de nos assegurar se uma população de controle, ao tomar um placebo
> pensando que ingere a nova droga, também não experimenta cura espontânea
> da doença em 20% das vezes.
>
> As variáveis devem ser separadas. Vamos supor que
> nos sentimos mareados, e nos dão uma pulseira que pressiona os pontos
> indicados pela acupuntura e cinqüenta miligramas de meclizina.
> Descobrimos que o mal-estar desaparece. O que causou o alívio - a
> pulseira ou a pílula? Só ficaremos sabendo se tomarmos uma sem usar a
> outra, na próxima vez em que ficarmos mareados. Agora vamos imaginar que
> não somos tão dedicados à ciência a ponto de querer ficar mareados. Nesse
> caso, não separamos as variáveis. Tomamos os dois remédios de novo.
> Conseguimos o resultado prático desejado; aprofundar o conhecimento,
> poderíamos dizer, não vale o desconforto de atingi-lo.
>
> Freqüentemente o experimento deve ser realizado
> pelo método "duplo cego", para que aqueles que aguardam uma certa
> descoberta não fiquem na posição potencialmente comprometedora de avaliar
> os resultados. Ao testar um novo remédio, por exemplo, queremos que os
> médicos que determinam os sintomas a serem mitigados não fiquem sabendo a
> que pacientes foi ministrada a nova droga. O conhecimento poderia
> influenciar a sua decisão, ainda que inconscientemente. Em vez disso, a
> lista dos que sentiram alívio dos sintomas pode ser comparada com a dos
> que tomaram a nova droga, cada uma determinada independentemente. Só
> então podemos estabelecer a correlação existente. Ou, ao comandar uma
> identificação policial pelo reconhecimento de fotos ou dos suspeitos
> enfileirados, o oficial encarregado não deveria saber quem é o principal
> suspeito, para não influenciar a testemunha consciente ou inconscientemente.
>
> Além de nos ensinar o que fazer na hora de avaliar
> uma afirmação, qualquer bom kit de detecção de mentiras deve também nos
> ensinar o que não fazer. Ele nos ajuda a reconhecer as falácias mais
> comuns e mais perigosas da lógica e da retórica. Muitos bons exemplos
> podem ser encontrados na religião e na política, porque seus
> profissionais são freqüentemente obrigados a justificar duas proposições
> contraditórias. Entre essas falácias estão:
>
> . ad hominem - expressão latina que significa "ao homem",
> quando atacamos o argumentador e não o argumento (por exemplo: A
> reverenda dra. Smith é uma conhecida fundamentalista bíblica, por isso
> não precisamos levar a sério suas objeções à evolução);
>
> . argumento de autoridade (por exemplo: O presidente Richard
> Nixon deve ser reeleito porque ele tem um plano secreto para pôr fim à
> guerra no Sudeste da Ásia - mas, como era secreto, o eleitorado não tinha
> meios de avaliar os méritos do plano; o argumento se reduzia a confiar em
> Nixon porque ele era o presidente: um erro, como se veio a saber);
>
> . argumento das conseqüências adversas (por exemplo: Deve
> existir um Deus que confere castigo e recompensa, porque, se não
> existisse, a sociedade seria muito mais desordenada e perigosa talvez até
> ingovernável *2. Ou: O réu de um caso de homicídio amplamente divulgado
> pelos meios de comunicação deve ser julgado culpado; do contrário, será
> um estímulo para os outros homens matarem as suas mulheres);
>
> . apelo à ignorância - a afirmação de que qualquer coisa que
> não provou ser falsa deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: Não há
> evidência convincente de que os UFOs não estejam visitando a Terra;
> portanto, os UFOs existem - e há vida inteligente em outros lugares no
> Universo. Ou: Talvez haja setenta quasilhões de outros mundos, mas não se
> conhece nenhum que tenha o progresso moral da Terra, por isso ainda somos
> o centro do Universo). Essa impaciência com a ambigüidade pode ser
> criticada pela expressão: a ausência de evidência não é evidência da ausência;
>
> . alegação especial, freqüentemente para salvar uma
> proposição em profunda dificuldade teórica (por exemplo: Como um Deus
> misericordioso pode condenar as gerações futuras a um tormento
> interminável, só porque, contra as suas ordens, uma mulher induziu um
> homem a comer uma maçã? Alegação especial: Você não compreende a doutrina
> sutil do livre-arbítrio. Ou: Como pode haver um Pai, um Filho e um
> Espírito Santo igualmente divinos na mesma Pessoa? Alegação especial:
> Você não compreende o mistério da Santíssima Trindade. Ou: Como Deus
> permitiu que os seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo - cada
> um comprometido a seu modo com medidas heróicas de bondade e compaixão -
> tenham perpetrado tanta crueldade durante tanto tempo? Alegação especial:
> Mais uma vez você não compreende o livre-arbítrio. E, de qualquer modo,
> os movimentos de Deus são misteriosos);
>
> . petição de princípio, também chamada de supor a resposta
> (por exemplo: Devemos instituir a pena de morte para desencorajar o crime
> violento. Mas a taxa de crimes violentos realmente cai quando é imposta a
> pena de morte? Ou: A bolsa de valores caiu ontem por causa de um ajuste
> técnico e da realização de lucros por parte dos investidores. Mas há
> alguma evidência independente do papel causal do "ajuste" e da realização
> de lucros? Aprendemos realmente alguma coisa com essa pretensa explicação?);
>
> . seleção das observações, também chamada de enumeração das
> circunstâncias favoráveis, ou, segundo a descrição do filósofo Francis
> Bacon, contar os acertos e esquecer os fracassos *3 (por exemplo: Um
> Estado se vangloria do presidente que gerou, mas se cala sobre os seus
> assassinos que matam em série);
>
> . estatística dos números pequenos - falácia aparentada com a
> seleção das observações (por exemplo: " Dizem que uma dentre cada cinco
> pessoas é chinesa. Como é possível? Conheço centenas de pessoas, e
> nenhuma delas é chinesa. Atenciosamente ". Ou: Tirei três setes seguidos.
> Hoje à noite não tenho como perder).
>
> . compreensão errônea da natureza da estatística (por
> exemplo: O presidente Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão
> ao descobrir que metade de todos os norte-americanos tem inteligência
> abaixo da média);
>
> . incoerência (por exemplo: Prepare-se prudentemente para
> enfrentar o pior na luta com um potencial adversário militar, mas ignore
> parcimoniosamente projeções científicas sobre perigos ambientais, porque
> elas não são "comprovadas". Ou: Atribua a diminuição da expectativa de
> vida na antiga União Soviética aos fracassos do comunismo há muitos anos,
> mas nunca atribua a alta taxa de mortalidade infantil nos Estados Unidos
> (no momento, a taxa mais alta das principais nações industriais) aos
> fracassos do capitalismo. Ou: Considere razoável que o Universo continue
> a existir para sempre no futuro, mas julgue absurda a possibilidade de
> que ele tenha duração infinita no passado);
>
> . non sequitur - expressão latina que significa "não se
> segue" (por exemplo: A nossa nação prevalecerá, porque Deus é grande. Mas
> quase todas as nações querem que isso seja verdade; a formulação alemã
> era "Gott mit uns"). Com freqüência, os que caem na falácia non sequitur
> deixaram simplesmente de reconhecer as possibilidades alternativas;
>
> . post hoc, ergo propter hoc - expressão latina que significa
> "aconteceu após um fato, logo foi por ele causado" (por exemplo, Jaime
> Cardinal Sin, arcebispo de Manila: " Conheço [...] uma moça de 26 anos
> que aparenta sessenta porque ela toma a pílula [anticoncepcional] ". Ou:
> Antes de as mulheres terem o direito de votar, não havia armas nucleares);
>
> . pergunta sem sentido (por exemplo: O que acontece quando
> uma força irresistível encontra um objeto imóvel? Mas se existe uma força
> irresistível, não pode haver objetos imóveis, e vice-versa);
>
> . exclusão do meio-termo, ou dicotomia falsa - considerando
> apenas os dois extremos num continuum de possibilidades intermediárias
> (por exemplo: Claro, tome o partido dele; meu marido é perfeito; eu estou
> sempre errada. Ou: Ame o seu país ou odeie-o. Ou: Se você não é parte da
> solução, é parte do problema);
>
> . curto prazo versus longo prazo - um subconjunto da exclusão
> do meio-termo, mas tão importante que o separei para lhe dar atenção
> especial (por exemplo: Não temos dinheiro para financiar programas que
> alimentem crianças mal nutridas e eduquem garotos em idade pré-escolar.
> Precisamos urgentemente tratar do crime nas ruas. Ou: Por que explorar o
> espaço ou fazer pesquisa de ciência básica, quando temos tantas pessoas
> sem teto?);
>
> . declive escorregadio, relacionado à exclusão do meio-termo
> (por exemplo: Se permitirmos o aborto nas primeiras semanas da gravidez,
> será impossível evitar o assassinato de um bebê no final da gravidez. Ou,
> inversamente: Se o Estado proíbe o aborto até no nono mês, logo estará
> nos dizendo o que fazer com os nossos corpos no momento da concepção);
>
> . confusão de correlação e causa (por exemplo: Um
> levantamento mostra que é maior o número de homossexuais entre os que têm
> curso superior do que entre os que não o possuem; portanto, a educação
> torna as pessoas homossexuais. Ou: Os terremotos andinos estão
> correlacionados com as maiores aproximações do planeta Urano; portanto -
> apesar da ausência de uma correlação desse tipo com respeito ao planeta
> Júpiter, mais próximo e mais volumoso - o planeta Urano é a causa dos
> terremotos); *4
>
> . espantalho - caricaturar uma posição para tornar mais fácil
> o ataque (por exemplo: Os cientistas supõem que os seres vivos
> simplesmente se reuniram por acaso - uma formulação que ignora
> propositadamente a idéia darwiniana central, de que a natureza se
> constrói guardando o que funciona e jogando fora o que não funciona. Ou
> isso é também uma falácia de curto prazo/longo prazo - os ambientalistas
> se importam mais com anhingas e corujas pintadas do que com gente);
>
> . evidência suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Uma
> "profecia" espantosamente exata e muito citada do atentado contra o
> presidente Reagan é apresentada na televisão; mas - detalhe importante -
> foi gravada antes ou depois do evento? Ou: Esses abusos do governo pedem
> uma revolução, mesmo que não se possa fazer uma omelete sem quebrar
> alguns ovos. Sim, mas será uma revolução que causará muito mais mortes do
> que o regime anterior? O que sugere a experiência de outras revoluções?
> Todas as revoluções contra regimes opressivos são desejáveis e vantajosas
> para o povo?);
>
> . palavras equívocas (por exemplo, a separação dos poderes na
> Constituição norte-americana especifica que os Estados Unidos não podem
> travar guerra sem uma declaração do Congresso. Por outro lado, os
> presidentes detêm o controle da política externa e o comando das guerras,
> que são potencialmente ferramentas poderosas para que sejam reeleitos.
> Portanto, os presidentes de qualquer partido político podem ficar
> tentados a arrumar disputas, enquanto desfraldam a bandeira e dão outros
> nomes às guerras - "ações policiais", "incursões armadas", "ataques de
> reação protetores", "pacificação", "salvaguarda dos interesses
> norte-americanos" e uma enorme variedade de "operações", como a "Operação
> da Causa Justa". Os eufemismos para a guerra são um dos itens de uma
> ampla categoria de reinvenções da linguagem para fins políticos.
> Talleyrand disse: "Uma arte importante dos políticos é encontrar novos
> nomes para instituições que com seus nomes antigos se tornaram odiosas
> para o público").
>
> Conhecer a existência dessas falácias lógicas e
> retóricas completa o nosso conjunto de ferramentas. Como todos os
> instrumentos, o kit de detecção de mentiras pode ser mal empregado,
> aplicado fora do contexto, ou até usado como uma alternativa mecânica
> para o pensamento. Mas, aplicado judiciosamente, pode fazer toda a
> diferença do mundo - ao menos para avaliar os nossos próprios argumentos
> antes de os apresentarmos aos outros.
>
> A indústria do tabaco norte-americana fatura cerca
> de 50 bilhões de dólares por ano. Há uma correlação estatística entre o
> fumo e o câncer, admite a indústria do fumo, mas não existe, dizem, uma
> relação causal. Uma falácia lógica está sendo cometida, é o que afirmam.
> O que significa tudo isso? Talvez as pessoas com predisposições
> hereditárias para contrair câncer tenham predisposições hereditárias para
> drogas que viciam - assim, poderia haver uma correlação entre o câncer e
> o fumo, mas aquele não seria causado por este. Podem-se inventar conexões
> desse tipo, cada vez mais forçadas. Essa é exatamente uma das razões por
> que a ciência insiste em fazer experimentos de controle.
>
> Vamos supor que se pintassem as costas de um grande
> número de camundongos com alcatrão de cigarro, e que também se observasse
> à saúde de um número quase idêntico de camundongos que não foram
> pintados. Se os primeiros contraem câncer e os segundos não, pode-se ter
> bastante certeza de que a correlação é causal. Trague a fumaça de tabaco,
> e a chance de contrair câncer aumenta; não trague, e a taxa permanece no
> nível básico. O mesmo vale para o enfisema, a bronquite e as doenças
> cardiovasculares.
>
> Quando, em 1953, se publicou a primeira obra na
> literatura científica mostrando que as substâncias presentes na fumaça do
> cigarro, quando espargidas nas costas de roedores, produzem tumores
> malignos, a reação das seis maiores companhias de tabaco foi começar uma
> campanha de relações públicas para impugnar a pesquisa, patrocinada pela
> Fundação Sloan Kettering. Uma reação semelhante à da Du Pont Corporation,
> quando em 1974 foi publicada a primeira pesquisa mostrando que seu
> produto Freon ataca a camada protetora de ozônio. Há muitos outros exemplos.
>
> É de se pensar que, antes de denunciar descobertas
> científicas indesejadas, as principais companhias deveriam empregar os
> seus consideráveis recursos para verificar a segurança dos produtos que
> se propõem fabricar. E, se perdessem algo, se cientistas independentes
> sugerissem um perigo, por que as companhias se oporiam? Prefeririam matar
> pessoas a perder lucros? Se, nesse mundo incerto, um erro precisa ser
> cometido, ele não deveria ter o objetivo de proteger os clientes e o
> público? E, por outro lado, o que esses casos revelam sobre a capacidade
> de o sistema de livre empresa policiar a si mesmo? Não são exemplos em
> que a interferência do governo é claramente a favor do interesse público?
>
> Um relatório interno da Brown and Williamson
> Tobacco Corporation, de 1971, lista como objetivo da companhia "afastar
> das mentes de milhões a falsa convicção de que fumar cigarros causa
> câncer de pulmão e outras doenças; uma convicção baseada em pressupostos
> fanáticos, rumores falaciosos, afirmações sem fundamento e declarações
> não científicas de oportunistas que buscam notoriedade". Eles se queixam do
>
> ataque incrível, sem precedentes e abominável
> contra o cigarro, constituindo o maior libelo e a maior difamação já
> perpetrados contra um produto na história da livre empresa; um libelo
> criminoso de tão grandes proporções e implicações que é de se perguntar
> como essa cruzada de calúnias pode se acomodar sob a Constituição pode
> ser tão desrespeitada e violada [sic].
>
> Essa retórica é apenas um pouco mais inflamada do
> que a das declarações que a indústria de tabaco emite de tempos em tempos
> para consumo público.
>
> Há muitas marcas de cigarros que anunciam baixo
> nível de alcatrão (dez miligramas ou menos por cigarro). Por que isso é
> uma virtude? Porque é no alcatrão refratário que os hidrocarbonetos
> aromáticos policíclicos e algumas outras substâncias cancerígenas se
> concentram. As propagandas que enfatizam baixos teores de alcatrão não
> são uma admissão tácita das companhias de tabaco de que os cigarros
> realmente causam câncer?
>
> A Healthy Building lnternational é uma organização
> lucrativa, que recebe há anos milhões de dólares da indústria do fumo.
> Ela realiza pesquisas sobre fumo passivo, e presta declarações para as
> companhias de tabaco. Em 1994, três de seus técnicos reclamaram que altos
> executivos teriam falsificado dados sobre partículas de cigarro inaláveis
> no ar. Em todos os casos, os dados inventados ou "corrigidos" faziam a
> fumaça de cigarro parecer mais segura do que as medições dos técnicos
> haviam indicado. Os departamentos de pesquisa da companhia ou as firmas
> do ramo contratadas já descobriram alguma vez que um produto é mais
> perigoso do que a empresa de tabaco declarou publicamente? Em caso
> positivo, mantiveram o emprego?
>
> O tabaco vicia; segundo muitos critérios, ainda
> mais do que a heroína e a cocaína. Havia uma razão para as pessoas
> "caminharem uma milha por um Camel", como diziam os anúncios da década de
> 40. Já morreram mais pessoas por causa do fumo do que em toda a Segunda
> Guerra Mundial. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o fumo mata 3
> milhões de pessoas por ano em todo o mundo. Esse número vai chegar a 10
> milhões de mortes por ano em 2020 em parte devido a uma grande campanha
> publicitária que pinta o tabagismo como um hábito avançado e elegante
> para as jovens mulheres do mundo em desenvolvimento. É em parte por causa
> da falta disseminada de conhecimento sobre a detecção de mentiras, o
> pensamento crítico e o método científico que a indústria de tabaco
> consegue ser o fornecedor bem-sucedido dessa mistura de venenos que
> viciam. A credulidade mata.
>
>
>
> Notas:
>
> 1. Esse é um problema que afeta os júris. Estudos
> retrospectivos mostram que alguns jurados tomam a sua decisão muito cedo
> - talvez durante a argumentação de abertura; depois guardam na memória as
> provas que parecem sustentar suas impressões iniciais e rejeitam as
> contrárias. O método das hipóteses eficazes alternativas não está em
> funcionamento nas suas cabeças.
>
> 2. Uma formulação mais cínica feita pelo historiador romano
> Políbio: "Como as massas são inconstantes, presas de desejos rebeldes,
> apaixonadas e sem temor pelas conseqüências, é preciso incutir-lhes medo
> para que se mantenham em ordem. Por isso, os antigos fizeram muito bem ao
> inventar os deuses e a crença no castigo depois da morte".
>
> 3. Meu exemplo favorito é a história que se conta sobre o
> físico italiano Enrico Fermi, recém-chegado às praias norte-americanas,
> membro do Projeto Manhattan de armas nucleares, e tendo de se defrontar
> com chefes-de-esquadra norte-americanos no meio da Segunda Guerra Mundial.
>
> - Fulano de tal é um grande general - disseram-lhe.
>
> - Qual é a definição de um grande general? - perguntou Fermi
> na sua maneira característica.
>
> - Acho que é um general que ganhou muitas batalhas consecutivas.
>
> - Quantas?
>
> Depois de alguma hesitação, decidiram-se por cinco.
>
> - Quantos dos generais norte-americanos são grandes generais?
>
> Depois de mais alguma hesitação, decidiram-se por uma pequena
> porcentagem. - Mas imaginem - replicou Fermi - que não exista isso que
> vocês chamam de grande general, que todos os exércitos tenham forças
> iguais, e que vencer uma batalha seja uma simples questão de sorte. Nesse
> caso, a probabilidade de vencer uma batalha é de uma em duas, ou 1/2;
> duas batalhas, 1/4; três, 1/8; quatro, 1/16; e cinco batalhas
> consecutivas, 1/32 - o que é mais ou menos 3%. Vocês esperam que uma
> pequena porcentagem dos generais norte-americanos ganhe cinco batalhas
> consecutivas - por uma simples questão de sorte. Agora, algum deles já
> ganhou dez batalhas consecutivas... ?
>
> 4. Ou: As crianças que assistem a programas violentos na
> televisão tendem a ser mais violentas na vida adulta. Mas a TV causou a
> violência, ou crianças violentas preferem assistir a programas violentos?
> Muito provavelmente, as duas coisas. Os defensores comerciais da
> violência na TV argumentam que qualquer um sabe distinguir entre a
> televisão e a realidade. Mas os programas infantis das manhãs de sábado
> têm hoje em dia uma média de 25 atos de violência por hora. No mínimo,
> isso toma as crianças insensíveis à agressão e à crueldade gratuita. E,
> se podemos implantar falsas lembranças nos cérebros de adultos
> impressionáveis, o que não estamos implantando em nossos filhos, quando
> os expomos a uns 100 mil atos de violência antes de terminarem a escola
> primária?
>
-------------- next part --------------
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