<html>
<body>
<font color="#000080">Recebi a msg abaixo, de uma lista sobre CIENCIA, e
me pareceu que talvez interesse aos integrantes deste Forum da UFRJ.
<br>
L.E.<br><br>
</font><blockquote type=cite class=cite cite="">From: HOMERO
<oraculo@atibaia.com.br><br>
<tt>Relendo um texto de Carl Sagan, do livro O Mundo Assombrado Pelos
Demonios, chamado A Refinada Arte de Detectar Mentiras, eu achei
interessante para nossa discussão sobre a ciência e as imperfeições
humanas. <br><br>
Este é um pequeno trecho:<br>
"Sagan: As explicações pagas de produtos, especialmente se
feitas por verdadeiros ou pretensos especialistas, constituem uma
saraivada constante de logros. Revelam menosprezo pela inteligência dos
clientes. Criam uma corrupção insidiosa das atitudes populares a respeito
da objetividade científica. Hoje, existem até comerciais em que
cientistas reais, alguns de considerável distinção, atuam como
garotos-propaganda para as empresas. Eles nos ensinam que também os
cientistas mentem por dinheiro. Como alertou Tom Paine, o fato de nos
acostumarmos com mentiras cria o fundamento para muitos outros males.
"<br><br>
Interessante, não?..:-) Ele também separa a ciência, seu método, o
pensamento racional, o cetiscismo, da aplicação prática e das falhas
humanas (naturais em todos nós).<br>
O texto completo segue abaixo.<br>
Um abraço.<br>
Homero<br>
_____________________________________________________<br>
<div align="center"><font face="Courier New, Courier" color="#000080">
</font><font face="Courier New, Courier" size=5 color="#000080"> A Arte
Refinada de Detectar Mentiras </b></font><br>
</div>
<div align="right"> Carl Sagan <br>
Fonte: O Mundo Assombrado pelos Demônios
</b><br>
</div>
<br>
<font face="Courier New, Courier" size=2 color="#000080">
A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe infusões
da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que podem ser
chamadas "ciências conforme a nossa vontade". Pois um homem
acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele
rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas,
porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por
superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que
não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma,
inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os
afetos colorem e contaminam o entendimento.</i><br>
Francis Bacon, Novum organon (1620) </font><br><br>
<br><br>
Meus pais morreram há anos. Eu era muito ligado a eles. Ainda sinto uma
saudade terrível. Sei que sempre sentirei. Desejo acreditar que sua
essência, suas personalidades, o que eu tanto amava neles, ainda existe -
real e verdadeiramente - em algum lugar. Não pediria muito, apenas cinco
ou dez minutos por ano, para lhes contar sobre os netos, pô-las ao
corrente das últimas novidades, lembrar-lhes que eu os amo. Uma parte
minha - por mais infantil que pareça - se pergunta como é que estarão.
"Está tudo bem?", desejo perguntar. As últimas palavras que me
vi dizendo a meu pai, na hora de sua morte, foram: "Tome
cuidado". <br><br>
Às vezes sonho que estou falando com meus pais, e de repente - ainda
imerso na elaboração do sonho - sou tomado pela consciência esmagadora de
que eles não morreram de verdade, de que tudo não passou de um erro
horrível. Ora, ali estão eles, vivos e bem de saúde, meu pai fazendo
piadas inteligentes, minha mãe muito séria me aconselhando a usar uma
manta porque está frio. Quando acordo, passo de novo por um processo
abreviado de luto. Evidentemente, existe algo dentro de mim que está
pronto a acreditar na vida após a morte. E que não está nem um pouco
interessado em saber se há alguma evidência séria que confirme tal coisa.
<br><br>
Por isso, não rio da mulher que visita o túmulo do marido e conversa com
ele de vez em quando, talvez no aniversário de sua morte. Não é difícil
de compreender. E se tenho dificuldades com o status ontológico daquele
com que ela está falando, não faz mal. Não é isso que importa. O que
importa é que os seres humanos são humanos. Mais de um terço dos adultos
norte-americanos acreditam que em algum nível estabeleceram contato com
os mortos. O número parece ter dado um pulo de 15% entre 1977 e 1988. Um
quarto dos norte-americanos acredita em reencarnação. <br><br>
Mas isso não significa que estou disposto a aceitar as pretensões de um
"médium", que afirma canalizar os espíritos dos seres amados
que partiram, quando tenho consciência de que a prática está cheia de
fraudes. Sei o quanto desejo acreditar que meus pais só abandonaram os
cascos de seus corpos, como insetos ou cobras na muda, e partiram para
outro lugar. Compreendo que esses sentimentos poderiam me tornar uma
presa fácil até de um trapaceiro pouco inteligente, de pessoas normais
que desconhecem suas mentes inconscientes, ou dos que sofrem de uma
desordem psiquiátrica dissociativa. Relutantemente, ponho em ação algumas
reservas de ceticismo. <br><br>
Como é, pergunto a mim mesmo, que os canalizadores nunca nos dão
informações verificáveis que nos são inacessíveis por outros meios? Por
que Alexandre, o Grande, nunca nos informa sobre a localização exata de
sua tumba, Fermat sobre o seu último teorema, James Wilkes Booth sobre a
conspiração do assassinato de Lincoln, Hermann Goering sobre o incêndio
do Reichstag? Por que Sófocles, Demócrito e Aristarco não ditam as suas
obras perdidas? Não querem que as gerações futuras conheçam as suas
obras-primas? <br><br>
Se fosse anunciada alguma evidência real de vida após a morte, desejaria
muito examiná-la; mas teria de ser uma evidência real científica, e não
simples anedota. Em casos como A Face em Marte e os raptos por
alienígenas, eu diria que é melhor a verdade dura do que a fantasia
consoladora. E, no cômputo final, revela-se freqüentemente que os fatos
são mais consoladores que a fantasia. <br><br>
A premissa fundamental da "canalização", do espiritismo e de
outras formas de necromancia é que não morremos quando experimentamos a
morte. Não exatamente. Continua a existir alguma parte de nós que pensa,
sente e tem memória. Seja o que for - alma ou espírito, nem matéria nem
energia, mas alguma outra coisa -, essa parte pode entrar novamente em
corpos humanos ou de outros seres, e assim a morte perde grande parte da
sua ferroada. E ainda mais: se as afirmações do espírita ou canalizador
são verdadeiras, temos uma oportunidade de entrar em contato com os seres
amados que morreram. <br><br>
J. Z. Knight, do estado de Washington, afirma estar em contato com um ser
de 35 mil anos chamado Ramtha. Ele fala inglês muito bem, usando a
língua, os lábios e as cordas vocais de Knight, com um sotaque que me
parece ser hindu. Como a maioria das pessoas sabe como falar, e muitas -
de crianças a atores profissionais - têm um repertório de vozes a seu
dispor, a hipótese mais simples sugere que é a própria sra. Knight que
faz Ramtha falar, e que ela não tem contato com entidades desencarnadas
da época plistocena glacial. Se há provas em contrário, gostaria muito de
conhecer. Seria consideravelmente mais impressionante se Ramtha pudesse
falar por si mesmo, sem a ajuda da boca da sra. Knight. Isso não sendo
possível, como podemos testar a afirmação? (A atriz Shirley MacLaine
afirma que Ramtha foi seu irmão em Atlântida, mas isso já é outra
história.) <br><br>
Vamos supor que Ramtha pudesse ser interrogado. Poderíamos verificar se
ele é quem afirma ser? Como é que ele sabe que viveu há 35 mil anos,
mesmo aproximadamente? Que calendário emprega? Quem está tomando nota dos
milênios intermediários? Trinta e cinco mil mais ou menos o quê? Como é
que eram as coisas há 35 mil anos? Ou Ramtha tem realmente essa idade, e
nesse caso vamos descobrir alguma coisa sobre esse período, ou é uma
fraude e ele (ou melhor, ela) vai se trair. <br><br>
Onde é que Ramtha vivia? (Sei que fala inglês com sotaque hindu, mas onde
é que falavam assim há 35 mil anos?) Como era o clima? O que Ramtha
comia? (Os arqueólogos têm alguma noção do que as pessoas comiam nessa
época.) Quais eram as línguas autóctones, e qual era a estrutura social?
Com quem mais Ramtha vivia - com a mulher, mulheres, filhos, netos? Qual
era o ciclo da vida, a taxa de mortalidade infantil, a expectativa de
vida? Eles tinham controle populacional? Que roupas vestiam? Como elas
eram fabricadas? Quais os predadores mais perigosos? Os instrumentos e as
estratégias da caça e da pesca? Armas? Sexismo endêmico? Xenofobia e
etnocentrismo? E, se Ramtha descendia da "elevada civilização"
de Atlântida, onde estão os detalhes lingüísticos, tecnológicos,
históricos e de outra natureza? Como era a sua escrita? Respondam. Em
lugar disso, a única coisa que recebemos são homilias banais. <br><br>
Para dar outro exemplo, eis um conjunto de informações que não foram
canalizadas de um morto antigo, mas de entidades não humanas
desconhecidas que fazem círculos nas plantações, assim como foi
registrado pelo jornalista Jim Schnabel: <br><br>
"Estamos muito ansiosos por essa nação pecadora estar espalhando
mentiras sobre nós. Não viemos em máquinas, não pousamos na Terra em
máquinas [...]. Viemos como o vento. Somos a Força Vital. A Força Vital
do solo [...]. Viemos até aqui [...]. Estamos apenas a um sopro de
distância [...] a um sopro de distância [...] não estamos a milhões de
milhas de distância [...] uma Força Vital que é mais potente que as
energias no corpo humano. Mas nós nos reunimos num nível mais elevado de
vida [...]. Não precisamos de nome. Vivemos num mundo paralelo ao seu, ao
lado do seu [...]. Os muros se romperam. Dois homens surgirão do passado
[...] o grande urso [...] o mundo encontrará a paz". <br>
<br>
<br>
As pessoas dão atenção a essas maravilhas pueris, principalmente porque
elas prometem algo parecido com a religião dos velhos tempos, mas
sobretudo a vida depois da morte, até a vida eterna. <br><br>
O versátil cientista britânico J.B.S. Haldane, que foi, entre muitas
outras coisas, um dos fundadores da genética populacional, propôs certa
vez uma perspectiva muito diferente para algo semelhante à vida eterna.
Haldane imaginava um futuro distante em que as estrelas se obscureceram e
o espaço foi preenchido em sua maior parte por um gás frio e fino. Ainda
assim, se esperarmos bastante tempo, ocorrerão flutuações estatísticas na
densidade desse gás. Ao longo de imensos períodos, as flutuações serão o
suficiente para reconstituir um Universo parecido com o nosso. Se o
Universo é infinitamente antigo, haverá um número infinito dessas
reconstituições, apontava Haldane. <br><br>
Assim, num Universo infinitamente antigo com um número infinito de
nascimentos de galáxias, estrelas, planetas e vida, deve reaparecer uma
Terra idêntica em que você e todos os seus seres queridos voltarão a se
reunir. Serei capaz de rever meus pais e apresentar-lhes os netos que
eles não conheceram. E tudo isso não acontecerá apenas uma vez, mas um
número infinito de vezes. <br><br>
Entretanto, de certo modo isso não oferece os consolos da religião. Se
nenhum de nós vai lembrar o que aconteceu desta vez, a época que o leitor
e eu estamos partilhando, as satisfações da ressurreição do corpo, pelo
menos aos meus ouvidos, soam ocas. <br><br>
Mas nessa reflexão subestimei o que significa infinidade. Na imagem de
Haldane, haverá universos, na verdade um número infinito de universos, em
que nossas mentes recordarão perfeitamente todas as vidas anteriores. A
satisfação está à mão - moderada, no entanto, pela idéia de todos esses
outros universos que também passarão a existir (novamente, não uma vez,
mas um número infinito de vezes) com tragédias e horrores que superam em
muito qualquer coisa que já experimentei desta vez. <br><br>
Entretanto, o Consolo de Haldane depende do tipo de universo em que
vivemos, e talvez de arcanos, como, por exemplo, saber se há bastante
matéria para finalmente reverter à expansão do universo, e o caráter das
flutuações no vácuo. Ao que parece, aqueles que sentem um profundo desejo
de vida após a morte poderiam se dedicar à cosmologia, à gravidade
quântica, à física das partículas elementares e à aritmética
trans-finita. <br><br>
Clemente de Alexandria, um dos padres da Igreja primitiva, em suas
Exortações aos gregos (escritas em torno do ano 190), rejeitava as
crenças pagãs em termos que pareceriam hoje em dia um pouco irônicos:
<br><br>
"Estamos realmente longe de permitir que os homens adultos dêem
ouvidos a essas histórias. Mesmo aos nossos filhos, quando eles berram de
cortar o coração, como se diz, não temos o hábito de contar histórias
fabulosas para acalmá-los". <br>
<br><br>
Em nossa época, temos padrões menos severos. Contamos às crianças
histórias sobre Papai Noel, o coelhinho da Páscoa e a fada do dente por
razões que achamos emocionalmente sadias, mas depois, antes de crescerem,
nós os desiludimos sobre esses mitos. Por que nos desdizemos? Porque o
seu bem-estar como adultos depende de eles conhecerem o mundo tal como é.
Nós nos preocupamos, e com razão, com os adultos que ainda acreditam em
Papai Noel. <br><br>
Sobre as religiões doutrinárias, escreveu o filósofo David Hume
que<br><br>
"os homens não ousam confessar, nem mesmo a seus corações, as
dúvidas que têm a respeito desses assuntos. Eles valorizam a fé
implícita; e disfarçam para si mesmos a sua real descrença, por meio das
afirmações mais convictas e do fanatismo mais positivo". <br>
<br><br>
Essa descrença tem conseqüências morais profundas, como escreveu o
revolucionário americano Tom Paine em The age of reason: <br><br>
"A descrença não consiste em acreditar, nem em desacreditar;
consiste em professar que se crê naquilo que não se crê. É impossível
calcular o dano moral, se é que posso chamá-lo assim, que a mentira
mental tem causado na sociedade. Quando o homem corrompeu e prostituiu de
tal modo a castidade de sua mente, a ponto de empenhar a sua crença
profissional em coisas que não acredita, ele está preparado para a
execução de qualquer outro crime". <br>
<br><br>
A formulação de T.H. Huxley foi: <br><br>
"O fundamento da moralidade é [...] renunciar a fingir que se
acredita naquilo que não comporta evidências, e a repetir proposições
ininteligíveis sobre coisas que estão além das possibilidades do
conhecimento". <br>
<br><br>
Clement, Hume, Paine e Huxley estavam todos falando de religião. Mas
grande parte do que escreveram tem aplicações mais gerais - por exemplo,
para as importunidades disseminadas no pano de fundo de nossa civilização
comercial: há um tipo de comercial de aspirina em que atores fingindo ser
médicos revelam que o produto do concorrente tem apenas determinada
fração do ingrediente analgésico que os médicos mais recomendam - eles
não dizem qual é o misterioso ingrediente. Enquanto o seu produto tem uma
quantidade drasticamente maior (1,2 a duas vezes mais por comprimido).
Por isso, comprem esse produto. Mas por que não tomar dois comprimidos do
concorrente? Ou considere-se o caso do analgésico que funciona melhor do
que o produto de "potência regular" do concorrente. Por que não
tomar o produto de "potência extra" do outro fabricante? E eles
certamente não falam nada sobre as mais de mil mortes por ano causadas
pelo uso da aspirina nos Estados Unidos ou os aparentes 5 mil casos
anuais de disfunção renal provocados pelo uso de acetaminofeno, de que a
marca mais vendida é o Tylenol. (Isso, contudo, talvez represente um caso
de correlação sem causalidade.) Ou quem se importa em saber quais os
cereais que têm mais vitamina, quando podemos tomar uma pílula de
vitamina no café da manhã? Da mesma forma, que importa saber que um
antiácido contém cálcio, se o cálcio serve para a nutrição e é
irrelevante para a gastrite? A cultura comercial está cheia de
informações errôneas e subterfúgios semelhantes à custa do consumidor.
Não se devem fazer perguntas. Não pensem. Comprem. <br><br>
As explicações pagas de produtos, especialmente se feitas por verdadeiros
ou pretensos especialistas, constituem uma saraivada constante de logros.
Revelam menosprezo pela inteligência dos clientes. Criam uma corrupção
insidiosa das atitudes populares a respeito da objetividade científica.
Hoje, existem até comerciais em que cientistas reais, alguns de
considerável distinção, atuam como garotos-propaganda para as empresas.
Eles nos ensinam que também os cientistas mentem por dinheiro. Como
alertou Tom Paine, o fato de nos acostumarmos com mentiras cria o
fundamento para muitos outros males. <br><br>
Enquanto escrevo, tenho diante de mim o programa da Whole Life Expo, a
exposição anual da Nova Era realizada em San Francisco. É comumente
visitada por dezenas de milhares de pessoas. Ali especialistas muito
questionáveis fazem propaganda de produtos muito questionáveis. Eis
algumas das apresentações: "Como proteínas presas no sangue produzem
dor e sofrimento". "Cristais, talismãs ou pedras?" (Tenho
a minha opinião.) Prossegue: "Assim como um cristal focaliza as
ondas sonoras e luminosas para o rádio e a televisão" - o que é um
erro insípido de quem não compreende como o rádio e a televisão funcionam
-, "ele pode amplificar as vibrações espirituais para o ser humano
afinado". Ou mais esta: "O retorno da deusa, um ritual de
apresentação". Outra: "Sincronismo, a experiência do
reconhecimento". Essa é fornecida pelo "irmão Charles".
Ou, na página seguinte: "Você, Saint-Germain e a cura pela chama
violeta". E assim continua, com milhares de anúncios sobre as
"oportunidades" - percorrendo a gama estreita que vai do dúbio
ao espúrio - que se acham à disposição na Whole Life Expo. <br><br>
Algumas vítimas de câncer, perturbadas, fazem peregrinações às Filipinas,
onde "cirurgiões mediúnicos", depois de esconder na palma da
mão pedaços de fígado de galinha ou coração de bode, fingem tocar nas
entranhas do paciente e retirar o tecido doente, que é então
triunfantemente exibido. Certos líderes de democracias ocidentais
consultam regularmente astrólogos e místicos antes de tomar decisões de
Estado. Sob a pressão pública por resultados, a polícia, às voltas com um
assassinato não solucionado ou um corpo desaparecido, consulta
"especialistas" de ESP (percepção extra-sensorial) (que nunca
adivinham nada além do esperado pelo senso comum, mas a polícia, dizem os
ESPs, continua a chamá-los). Anuncia-se a previsão de uma divergência com
nações adversárias, e a CIA, estimulada pelo Congresso, gasta dinheiro
dos impostos para descobrir se podemos localizar submarinos nas
profundezas do oceano concentrando o pensamento neles. Um
"médium" - usando pêndulos sobre mapas e varinhas rabdomânticas
em aviões - finge descobrir novos depósitos minerais; uma companhia
mineira australiana lhe adianta elevada soma de dólares, irrecuperável em
caso de fracasso, garantindo-lhe uma participação na exploração do
minério em caso de sucesso. Nada é descoberto. Algumas estátuas de Jesus
ou murais de Maria ficam manchados de umidade, e milhares de pessoas
bondosas se convencem de que testemunharam um milagre. <br><br>
Todos esses são casos de mentiras provadas ou presumíveis. Acontece um
logro, ora de forma inocente, mas com a colaboração dos envolvidos, ora
com premeditação cínica. Em geral, a vítima se vê presa de forte emoção -
admiração, medo, ganância, dor. A aceitação crédula da mentira talvez nos
custe dinheiro; é o que P.T. Barnum apontou, ao afirmar: "Nasce um
otário a cada minuto". Mas pode ser muito mais perigoso que isso, e
quando os governos e as sociedades perdem a capacidade de pensar
criticamente os resultados podem ser catastróficos - por mais que
deploremos aqueles que engoliram a mentira. <br><br>
Na ciência, podemos começar com resultados experimentais, dados,
observações, medições, "fatos". Inventamos, se possível, um
rico conjunto de explicações plausíveis e sistematicamente confrontamos
cada explicação com os fatos. Ao longo de seu treinamento, os cientistas
são equipados com um kit de detecção de mentiras. Este é ativado sempre
que novas idéias são apresentadas para consideração. Se a nova idéia
sobrevive ao exame das ferramentas do kit, nós lhe concedemos aceitação
calorosa, ainda que experimental. Se possuímos essa tendência, se não
desejamos engolir mentiras mesmo quando são confortadoras, há precauções
que podem ser tomadas; existe um método testado pelo consumidor,
experimentado e verdadeiro. <br><br>
O que existe no kit ? Ferramentas para o pensamento cético. <br><br>
O pensamento cético se resume no meio de construir e compreender um
argumento racional e - o que é especialmente importante - de reconhecer
um argumento falacioso ou fraudulento. A questão não é se gostamos da
conclusão que emerge de uma cadeia de raciocínio, mas se a conclusão
deriva da premissa ou do ponto de partida e se essa premissa é
verdadeira. <br><br>
Eis algumas das ferramentas: <br><br>
.
Sempre que possível, deve haver confirmação independente dos
"fatos". <br><br>
.
Devemos estimular um debate substantivo sobre as evidências, do qual
participarão notórios partidários de todos os pontos de vista. <br><br>
. Os
argumentos de autoridade têm pouca importância - as
"autoridades" cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los
no futuro. Uma forma melhor de expressar essa idéia é talvez dizer que na
ciência não existem autoridades; quando muito, há especialistas.
<br><br>
.
Devemos considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa deve ser
explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais
poderia ser explicada. Depois devemos pensar nos testes que poderiam
servir para invalidar sistematicamente cada uma das alternativas. O que
sobreviver, a hipótese que resistir a todas as refutações nessa seleção
darwiniana entre as "múltiplas hipóteses eficazes", tem uma
chance muito melhor de ser a resposta correta do que se tivéssemos
simplesmente adotado a primeira idéia que prendeu nossa imaginação *1.
<br><br>
.
Devemos tentar não ficar demasiado ligados a uma hipótese, só por ser a
nossa. É apenas uma estação intermediária na busca do conhecimento.
Devemos nos perguntar por que a idéia nos agrada. Devemos compará-la
imparcialmente com as alternativas. Devemos verificar se é possível
encontrar razões para rejeitá-la. Se não, outros o farão. <br><br>
.
Devemos quantificar. Se o que estiver sendo explicado é passível de
medição, de ser relacionado a alguma quantidade numérica, seremos muito
mais capazes de discriminar entre as hipóteses concorrentes. O que é vago
e qualitativo é suscetível de muitas explicações. Há certamente verdades
a serem buscadas nas muitas questões qualitativas que somos obrigados a
enfrentar, mas encontrá-las é mais desafiador. <br><br>
. Se
há uma cadeia de argumentos, todos os elos na cadeia devem funcionar
(inclusive a premissa) - e não apenas a maioria deles. <br><br>
. A
Navalha de Occam. Essa maneira prática e conveniente de proceder nos
incita a escolher a mais simples dentre duas hipóteses que explicam os
dados com igual eficiência. <br><br>
.
Devemos sempre perguntar se a hipótese pode ser, pelo menos em princípio,
falseada. As proposições que não podem ser testadas ou falseadas não
valem grande coisa. Considere-se a idéia grandiosa de que o nosso
Universo e tudo o que nele existe é apenas uma partícula elementar - um
elétron, por exemplo - num Cosmos muito maior. Mas, se nunca obtemos
informações de fora de nosso Universo, essa idéia não se torna impossível
de ser refutada? Devemos poder verificar as afirmativas. Os céticos
inveterados devem ter a oportunidade de seguir o nosso raciocínio, copiar
os nossos experimentos e ver se chegam ao mesmo resultado. <br><br>
A confiança em experimentos cuidadosamente planejados e controlados é de
suma importância, como tentei enfatizar antes. Não aprenderemos com a
simples contemplação. É tentador ficar satisfeitos com a primeira
explicação possível que passa pelas nossas cabeças. Uma é muito melhor
que nenhuma. Mas o que acontece se podemos inventar várias? Como decidir
entre elas? Não decidimos. Deixamos que a experimentação faça as escolhas
para nós. Francis Bacon indicou a razão clássica: "A argumentação
não é suficiente para a descoberta de novos trabalhos, pois a sutileza da
natureza é muitas vezes maior do que a sutileza dos argumentos".
<br><br>
Os experimentos de controle são essenciais. Por exemplo, se alegam que um
novo remédio cura uma doença em 20% dos casos, temos de nos assegurar se
uma população de controle, ao tomar um placebo pensando que ingere a nova
droga, também não experimenta cura espontânea da doença em 20% das vezes.
<br><br>
As variáveis devem ser separadas. Vamos supor que nos sentimos mareados,
e nos dão uma pulseira que pressiona os pontos indicados pela acupuntura
e cinqüenta miligramas de meclizina. Descobrimos que o mal-estar
desaparece. O que causou o alívio - a pulseira ou a pílula? Só ficaremos
sabendo se tomarmos uma sem usar a outra, na próxima vez em que ficarmos
mareados. Agora vamos imaginar que não somos tão dedicados à ciência a
ponto de querer ficar mareados. Nesse caso, não separamos as variáveis.
Tomamos os dois remédios de novo. Conseguimos o resultado prático
desejado; aprofundar o conhecimento, poderíamos dizer, não vale o
desconforto de atingi-lo. <br><br>
Freqüentemente o experimento deve ser realizado pelo método "duplo
cego", para que aqueles que aguardam uma certa descoberta não fiquem
na posição potencialmente comprometedora de avaliar os resultados. Ao
testar um novo remédio, por exemplo, queremos que os médicos que
determinam os sintomas a serem mitigados não fiquem sabendo a que
pacientes foi ministrada a nova droga. O conhecimento poderia influenciar
a sua decisão, ainda que inconscientemente. Em vez disso, a lista dos que
sentiram alívio dos sintomas pode ser comparada com a dos que tomaram a
nova droga, cada uma determinada independentemente. Só então podemos
estabelecer a correlação existente. Ou, ao comandar uma identificação
policial pelo reconhecimento de fotos ou dos suspeitos enfileirados, o
oficial encarregado não deveria saber quem é o principal suspeito, para
não influenciar a testemunha consciente ou inconscientemente. <br><br>
Além de nos ensinar o que fazer na hora de avaliar uma afirmação,
qualquer bom kit de detecção de mentiras deve também nos ensinar o que
não fazer. Ele nos ajuda a reconhecer as falácias mais comuns e mais
perigosas da lógica e da retórica. Muitos bons exemplos podem ser
encontrados na religião e na política, porque seus profissionais são
freqüentemente obrigados a justificar duas proposições contraditórias.
Entre essas falácias estão: <br><br>
. ad
hominem - expressão latina que significa "ao homem", quando
atacamos o argumentador e não o argumento (por exemplo: A reverenda dra.
Smith é uma conhecida fundamentalista bíblica, por isso não precisamos
levar a sério suas objeções à evolução); <br><br>
.
argumento de autoridade (por exemplo: O presidente Richard Nixon deve ser
reeleito porque ele tem um plano secreto para pôr fim à guerra no Sudeste
da Ásia - mas, como era secreto, o eleitorado não tinha meios de avaliar
os méritos do plano; o argumento se reduzia a confiar em Nixon porque ele
era o presidente: um erro, como se veio a saber); <br><br>
.
argumento das conseqüências adversas (por exemplo: Deve existir um Deus
que confere castigo e recompensa, porque, se não existisse, a sociedade
seria muito mais desordenada e perigosa talvez até ingovernável *2. Ou: O
réu de um caso de homicídio amplamente divulgado pelos meios de
comunicação deve ser julgado culpado; do contrário, será um estímulo para
os outros homens matarem as suas mulheres); <br><br>
.
apelo à ignorância - a afirmação de que qualquer coisa que não provou ser
falsa deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: Não há evidência
convincente de que os UFOs não estejam visitando a Terra; portanto, os
UFOs existem - e há vida inteligente em outros lugares no Universo. Ou:
Talvez haja setenta quasilhões de outros mundos, mas não se conhece
nenhum que tenha o progresso moral da Terra, por isso ainda somos o
centro do Universo). Essa impaciência com a ambigüidade pode ser
criticada pela expressão: a ausência de evidência não é evidência da
ausência; <br><br>
.
alegação especial, freqüentemente para salvar uma proposição em profunda
dificuldade teórica (por exemplo: Como um Deus misericordioso pode
condenar as gerações futuras a um tormento interminável, só porque,
contra as suas ordens, uma mulher induziu um homem a comer uma maçã?
Alegação especial: Você não compreende a doutrina sutil do
livre-arbítrio. Ou: Como pode haver um Pai, um Filho e um Espírito Santo
igualmente divinos na mesma Pessoa? Alegação especial: Você não
compreende o mistério da Santíssima Trindade. Ou: Como Deus permitiu que
os seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo - cada um
comprometido a seu modo com medidas heróicas de bondade e compaixão -
tenham perpetrado tanta crueldade durante tanto tempo? Alegação especial:
Mais uma vez você não compreende o livre-arbítrio. E, de qualquer modo,
os movimentos de Deus são misteriosos); <br><br>
.
petição de princípio, também chamada de supor a resposta (por exemplo:
Devemos instituir a pena de morte para desencorajar o crime violento. Mas
a taxa de crimes violentos realmente cai quando é imposta a pena de
morte? Ou: A bolsa de valores caiu ontem por causa de um ajuste técnico e
da realização de lucros por parte dos investidores. Mas há alguma
evidência independente do papel causal do "ajuste" e da
realização de lucros? Aprendemos realmente alguma coisa com essa pretensa
explicação?); <br><br>
.
seleção das observações, também chamada de enumeração das circunstâncias
favoráveis, ou, segundo a descrição do filósofo Francis Bacon, contar os
acertos e esquecer os fracassos *3 (por exemplo: Um Estado se vangloria
do presidente que gerou, mas se cala sobre os seus assassinos que matam
em série); <br><br>
.
estatística dos números pequenos - falácia aparentada com a seleção das
observações (por exemplo: " Dizem que uma dentre cada cinco pessoas
é chinesa. Como é possível? Conheço centenas de pessoas, e nenhuma delas
é chinesa. Atenciosamente ". Ou: Tirei três setes seguidos. Hoje à
noite não tenho como perder). <br><br>
.
compreensão errônea da natureza da estatística (por exemplo: O presidente
Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão ao descobrir que metade
de todos os norte-americanos tem inteligência abaixo da média);
<br><br>
.
incoerência (por exemplo: Prepare-se prudentemente para enfrentar o pior
na luta com um potencial adversário militar, mas ignore parcimoniosamente
projeções científicas sobre perigos ambientais, porque elas não são
"comprovadas". Ou: Atribua a diminuição da expectativa de vida
na antiga União Soviética aos fracassos do comunismo há muitos anos, mas
nunca atribua a alta taxa de mortalidade infantil nos Estados Unidos (no
momento, a taxa mais alta das principais nações industriais) aos
fracassos do capitalismo. Ou: Considere razoável que o Universo continue
a existir para sempre no futuro, mas julgue absurda a possibilidade de
que ele tenha duração infinita no passado); <br><br>
. non
sequitur - expressão latina que significa "não se segue" (por
exemplo: A nossa nação prevalecerá, porque Deus é grande. Mas quase todas
as nações querem que isso seja verdade; a formulação alemã era "Gott
mit uns"). Com freqüência, os que caem na falácia non sequitur
deixaram simplesmente de reconhecer as possibilidades alternativas;
<br><br>
. post
hoc, ergo propter hoc - expressão latina que significa "aconteceu
após um fato, logo foi por ele causado" (por exemplo, Jaime Cardinal
Sin, arcebispo de Manila: " Conheço [...] uma moça de 26 anos que
aparenta sessenta porque ela toma a pílula [anticoncepcional] ". Ou:
Antes de as mulheres terem o direito de votar, não havia armas
nucleares); <br><br>
.
pergunta sem sentido (por exemplo: O que acontece quando uma força
irresistível encontra um objeto imóvel? Mas se existe uma força
irresistível, não pode haver objetos imóveis, e vice-versa); <br><br>
.
exclusão do meio-termo, ou dicotomia falsa - considerando apenas os dois
extremos num continuum de possibilidades intermediárias (por exemplo:
Claro, tome o partido dele; meu marido é perfeito; eu estou sempre
errada. Ou: Ame o seu país ou odeie-o. Ou: Se você não é parte da
solução, é parte do problema); <br><br>
.
curto prazo versus longo prazo - um subconjunto da exclusão do
meio-termo, mas tão importante que o separei para lhe dar atenção
especial (por exemplo: Não temos dinheiro para financiar programas que
alimentem crianças mal nutridas e eduquem garotos em idade pré-escolar.
Precisamos urgentemente tratar do crime nas ruas. Ou: Por que explorar o
espaço ou fazer pesquisa de ciência básica, quando temos tantas pessoas
sem teto?); <br><br>
.
declive escorregadio, relacionado à exclusão do meio-termo (por exemplo:
Se permitirmos o aborto nas primeiras semanas da gravidez, será
impossível evitar o assassinato de um bebê no final da gravidez. Ou,
inversamente: Se o Estado proíbe o aborto até no nono mês, logo estará
nos dizendo o que fazer com os nossos corpos no momento da concepção);
<br><br>
.
confusão de correlação e causa (por exemplo: Um levantamento mostra que é
maior o número de homossexuais entre os que têm curso superior do que
entre os que não o possuem; portanto, a educação torna as pessoas
homossexuais. Ou: Os terremotos andinos estão correlacionados com as
maiores aproximações do planeta Urano; portanto - apesar da ausência de
uma correlação desse tipo com respeito ao planeta Júpiter, mais próximo e
mais volumoso - o planeta Urano é a causa dos terremotos); *4 <br><br>
.
espantalho - caricaturar uma posição para tornar mais fácil o ataque (por
exemplo: Os cientistas supõem que os seres vivos simplesmente se reuniram
por acaso - uma formulação que ignora propositadamente a idéia darwiniana
central, de que a natureza se constrói guardando o que funciona e jogando
fora o que não funciona. Ou isso é também uma falácia de curto
prazo/longo prazo - os ambientalistas se importam mais com anhingas e
corujas pintadas do que com gente); <br><br>
.
evidência suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Uma
"profecia" espantosamente exata e muito citada do atentado
contra o presidente Reagan é apresentada na televisão; mas - detalhe
importante - foi gravada antes ou depois do evento? Ou: Esses abusos do
governo pedem uma revolução, mesmo que não se possa fazer uma omelete sem
quebrar alguns ovos. Sim, mas será uma revolução que causará muito mais
mortes do que o regime anterior? O que sugere a experiência de outras
revoluções? Todas as revoluções contra regimes opressivos são desejáveis
e vantajosas para o povo?); <br><br>
.
palavras equívocas (por exemplo, a separação dos poderes na Constituição
norte-americana especifica que os Estados Unidos não podem travar guerra
sem uma declaração do Congresso. Por outro lado, os presidentes detêm o
controle da política externa e o comando das guerras, que são
potencialmente ferramentas poderosas para que sejam reeleitos. Portanto,
os presidentes de qualquer partido político podem ficar tentados a
arrumar disputas, enquanto desfraldam a bandeira e dão outros nomes às
guerras - "ações policiais", "incursões armadas",
"ataques de reação protetores", "pacificação",
"salvaguarda dos interesses norte-americanos" e uma enorme
variedade de "operações", como a "Operação da Causa
Justa". Os eufemismos para a guerra são um dos itens de uma ampla
categoria de reinvenções da linguagem para fins políticos. Talleyrand
disse: "Uma arte importante dos políticos é encontrar novos nomes
para instituições que com seus nomes antigos se tornaram odiosas para o
público"). <br><br>
Conhecer a existência dessas falácias lógicas e retóricas completa o
nosso conjunto de ferramentas. Como todos os instrumentos, o kit de
detecção de mentiras pode ser mal empregado, aplicado fora do contexto,
ou até usado como uma alternativa mecânica para o pensamento. Mas,
aplicado judiciosamente, pode fazer toda a diferença do mundo - ao menos
para avaliar os nossos próprios argumentos antes de os apresentarmos aos
outros. <br><br>
A indústria do tabaco norte-americana fatura cerca de 50 bilhões de
dólares por ano. Há uma correlação estatística entre o fumo e o câncer,
admite a indústria do fumo, mas não existe, dizem, uma relação causal.
Uma falácia lógica está sendo cometida, é o que afirmam. O que significa
tudo isso? Talvez as pessoas com predisposições hereditárias para
contrair câncer tenham predisposições hereditárias para drogas que viciam
- assim, poderia haver uma correlação entre o câncer e o fumo, mas aquele
não seria causado por este. Podem-se inventar conexões desse tipo, cada
vez mais forçadas. Essa é exatamente uma das razões por que a ciência
insiste em fazer experimentos de controle. <br><br>
Vamos supor que se pintassem as costas de um grande número de camundongos
com alcatrão de cigarro, e que também se observasse à saúde de um número
quase idêntico de camundongos que não foram pintados. Se os primeiros
contraem câncer e os segundos não, pode-se ter bastante certeza de que a
correlação é causal. Trague a fumaça de tabaco, e a chance de contrair
câncer aumenta; não trague, e a taxa permanece no nível básico. O mesmo
vale para o enfisema, a bronquite e as doenças cardiovasculares.
<br><br>
Quando, em 1953, se publicou a primeira obra na literatura científica
mostrando que as substâncias presentes na fumaça do cigarro, quando
espargidas nas costas de roedores, produzem tumores malignos, a reação
das seis maiores companhias de tabaco foi começar uma campanha de
relações públicas para impugnar a pesquisa, patrocinada pela Fundação
Sloan Kettering. Uma reação semelhante à da Du Pont Corporation, quando
em 1974 foi publicada a primeira pesquisa mostrando que seu produto Freon
ataca a camada protetora de ozônio. Há muitos outros exemplos. <br><br>
É de se pensar que, antes de denunciar descobertas científicas
indesejadas, as principais companhias deveriam empregar os seus
consideráveis recursos para verificar a segurança dos produtos que se
propõem fabricar. E, se perdessem algo, se cientistas independentes
sugerissem um perigo, por que as companhias se oporiam? Prefeririam matar
pessoas a perder lucros? Se, nesse mundo incerto, um erro precisa ser
cometido, ele não deveria ter o objetivo de proteger os clientes e o
público? E, por outro lado, o que esses casos revelam sobre a capacidade
de o sistema de livre empresa policiar a si mesmo? Não são exemplos em
que a interferência do governo é claramente a favor do interesse público?
<br><br>
Um relatório interno da Brown and Williamson Tobacco Corporation, de
1971, lista como objetivo da companhia "afastar das mentes de
milhões a falsa convicção de que fumar cigarros causa câncer de pulmão e
outras doenças; uma convicção baseada em pressupostos fanáticos, rumores
falaciosos, afirmações sem fundamento e declarações não científicas de
oportunistas que buscam notoriedade". Eles se queixam do <br><br>
ataque incrível, sem precedentes e abominável contra o cigarro,
constituindo o maior libelo e a maior difamação já perpetrados contra um
produto na história da livre empresa; um libelo criminoso de tão grandes
proporções e implicações que é de se perguntar como essa cruzada de
calúnias pode se acomodar sob a Constituição pode ser tão desrespeitada e
violada [sic]. <br><br>
Essa retórica é apenas um pouco mais inflamada do que a das declarações
que a indústria de tabaco emite de tempos em tempos para consumo público.
<br><br>
Há muitas marcas de cigarros que anunciam baixo nível de alcatrão (dez
miligramas ou menos por cigarro). Por que isso é uma virtude? Porque é no
alcatrão refratário que os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e
algumas outras substâncias cancerígenas se concentram. As propagandas que
enfatizam baixos teores de alcatrão não são uma admissão tácita das
companhias de tabaco de que os cigarros realmente causam câncer?
<br><br>
A Healthy Building lnternational é uma organização lucrativa, que recebe
há anos milhões de dólares da indústria do fumo. Ela realiza pesquisas
sobre fumo passivo, e presta declarações para as companhias de tabaco. Em
1994, três de seus técnicos reclamaram que altos executivos teriam
falsificado dados sobre partículas de cigarro inaláveis no ar. Em todos
os casos, os dados inventados ou "corrigidos" faziam a fumaça
de cigarro parecer mais segura do que as medições dos técnicos haviam
indicado. Os departamentos de pesquisa da companhia ou as firmas do ramo
contratadas já descobriram alguma vez que um produto é mais perigoso do
que a empresa de tabaco declarou publicamente? Em caso positivo,
mantiveram o emprego? <br><br>
O tabaco vicia; segundo muitos critérios, ainda mais do que a heroína e a
cocaína. Havia uma razão para as pessoas "caminharem uma milha por
um Camel", como diziam os anúncios da década de 40. Já morreram mais
pessoas por causa do fumo do que em toda a Segunda Guerra Mundial.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o fumo mata 3 milhões de pessoas
por ano em todo o mundo. Esse número vai chegar a 10 milhões de mortes
por ano em 2020 em parte devido a uma grande campanha publicitária que
pinta o tabagismo como um hábito avançado e elegante para as jovens
mulheres do mundo em desenvolvimento. É em parte por causa da falta
disseminada de conhecimento sobre a detecção de mentiras, o pensamento
crítico e o método científico que a indústria de tabaco consegue ser o
fornecedor bem-sucedido dessa mistura de venenos que viciam. A
credulidade mata. <br><br>
<br><br>
Notas:<br><br>
1.
Esse é um problema que afeta os júris. Estudos retrospectivos mostram que
alguns jurados tomam a sua decisão muito cedo - talvez durante a
argumentação de abertura; depois guardam na memória as provas que parecem
sustentar suas impressões iniciais e rejeitam as contrárias. O método das
hipóteses eficazes alternativas não está em funcionamento nas suas
cabeças. <br><br>
2. Uma
formulação mais cínica feita pelo historiador romano Políbio: "Como
as massas são inconstantes, presas de desejos rebeldes, apaixonadas e sem
temor pelas conseqüências, é preciso incutir-lhes medo para que se
mantenham em ordem. Por isso, os antigos fizeram muito bem ao inventar os
deuses e a crença no castigo depois da morte". <br><br>
3. Meu
exemplo favorito é a história que se conta sobre o físico italiano Enrico
Fermi, recém-chegado às praias norte-americanas, membro do Projeto
Manhattan de armas nucleares, e tendo de se defrontar com
chefes-de-esquadra norte-americanos no meio da Segunda Guerra Mundial.
<br><br>
-
Fulano de tal é um grande general - disseram-lhe. <br><br>
- Qual
é a definição de um grande general? - perguntou Fermi na sua maneira
característica. <br><br>
- Acho
que é um general que ganhou muitas batalhas consecutivas. <br><br>
-
Quantas? <br><br>
Depois
de alguma hesitação, decidiram-se por cinco. <br><br>
-
Quantos dos generais norte-americanos são grandes generais? <br><br>
Depois
de mais alguma hesitação, decidiram-se por uma pequena porcentagem. - Mas
imaginem - replicou Fermi - que não exista isso que vocês chamam de
grande general, que todos os exércitos tenham forças iguais, e que vencer
uma batalha seja uma simples questão de sorte. Nesse caso, a
probabilidade de vencer uma batalha é de uma em duas, ou 1/2; duas
batalhas, 1/4; três, 1/8; quatro, 1/16; e cinco batalhas consecutivas,
1/32 - o que é mais ou menos 3%. Vocês esperam que uma pequena
porcentagem dos generais norte-americanos ganhe cinco batalhas
consecutivas - por uma simples questão de sorte. Agora, algum deles já
ganhou dez batalhas consecutivas... ? <br><br>
4. Ou:
As crianças que assistem a programas violentos na televisão tendem a ser
mais violentas na vida adulta. Mas a TV causou a violência, ou crianças
violentas preferem assistir a programas violentos? Muito provavelmente,
as duas coisas. Os defensores comerciais da violência na TV argumentam
que qualquer um sabe distinguir entre a televisão e a realidade. Mas os
programas infantis das manhãs de sábado têm hoje em dia uma média de 25
atos de violência por hora. No mínimo, isso toma as crianças insensíveis
à agressão e à crueldade gratuita. E, se podemos implantar falsas
lembranças nos cérebros de adultos impressionáveis, o que não estamos
implantando em nossos filhos, quando os expomos a uns 100 mil atos de
violência antes de terminarem a escola primária?<br>
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