[forum-prof] A Constituição, segundo Tarso
Prof. Luiz Eduardo
luizeduardo at pharma.ufrj.br
Tue Jan 25 18:03:50 BRST 2005
O Globo
25 janeiro 2005
A Constituição, segundo Tarso
[]
ALI KAMEL
Depois de ler o artigo sobre reforma universitária do ministro da Educação,
Tarso Genro, em resposta ao meu, o sentimento foi de frustração. Ele não
negou o que escrevi, mas apenas se justificou: tudo o que propusera teria
respaldo na Constituição. Percebi que os problemas eram então ainda mais
agudos. Mas eles não residem em nossa Constituição e sim na interpretação
que o ministro dá a ela. Uma interpretação descabida.
Recapitulando o que escrevi: o anteprojeto é dirigista e levará a
universidade, pública e privada, à tutela do governo e de movimentos
sociais. As universidades terão de estar voltadas especificamente para o
desenvolvimento regional, segundo os interesses nacionais definidos pelo
governo. Serão criados conselhos comunitários sociais, compostos
majoritariamente por pessoas externas às universidades, ligadas a
entidades de fomento, de classe, sindicais e da sociedade civil. A esses
conselhos, caberá examinar o cumprimento das regras estabelecidas pelo
anteprojeto, e seus relatórios deverão ser levados obrigatoriamente em
conta pelo MEC. Isso atenta contra o espírito livre que deve reger a ciência.
O ministro disse que os artigos primeiro, terceiro e quarto da Constituição
respaldam o anteprojeto. Em nenhuma hipótese. A Constituição tem um
capítulo exclusivo dedicado à educação e outro à ciência. Os artigos que o
ministro cita não se referem àqueles capítulos, mas ao que se intitula dos
princípios fundamentais, que trata da definição do que seja a República
Federativa do Brasil e de seus valores. São aqueles que estabelecem a união
indissolúvel entre estados e municípios, formando um estado democrático de
direito, com princípios como a dignidade da pessoa humana, pluralismo
político, livre iniciativa.
Ora, é absolutamente abusivo extrair desses princípios gerais relativos à
nossa República qualquer regra específica para toda e qualquer atividade
humana no Brasil, especialmente a educação, a quem os constituintes
dedicaram um capítulo à parte. A partir dos incisos segundo e terceiro do
artigo terceiro (são objetivos da República garantir o desenvolvimento
nacional e combater a desigualdade regional) não se pode, de maneira
nenhuma, decretar que as universidades públicas e privadas devam estar
voltadas especificamente para o desenvolvimento regional, segundo
interesses nacionais, determinados pelo governo. Isso atenta contra a
liberdade acadêmica e contraria o espírito livre que rege a busca do
conhecimento, que estão garantidos pela Constituição.
Se o ministro estivesse certo, as liberdades de expressão, de informação,
de criação estariam também limitadas pelos interesses nacionais, e não
estão. Um artista pode fazer o filme que desejar, sem se preocupar com mais
nada senão com o seu compromisso de fazer arte. Um cientista deve, como
estabelece a Lei de Diretrizes e Base da Educação, estudar todos os
problemas do mundo e não apenas aqueles que o governo do momento
considerar prioritários.
Exoticamente, para justificar a política de cotas raciais, o ministro usa o
artigo quarto, que trata exclusivamente dos princípios que devem nortear
nossas relações internacionais: entre outros, autodeterminação dos povos,
defesa da paz, repúdio ao terrorismo e ao racismo. O certo seria usar o
último inciso do artigo terceiro, aquele que repudia qualquer discriminação
com base em cor ou raça. Ele não o faz porque sabe que este inciso dá bem a
medida de como as cotas raciais são inconstitucionais: discriminar alguém,
mesmo positivamente, é algo que a Constituição veda.
O ministro também alega que os artigos 205 e 206 da Constituição, não
somente determinam a gestão democrática do ensino público mas também o
incentivo à colaboração da sociedade. Diz isso para justificar, de um
lado, a obrigatoriedade de adoção de uma gestão colegiada, com eleições
diretas, e, de outro, a criação dos tais conselhos sociais, que tutelarão
as universidades. É um jogo de palavras.
A Constituição fala de fato em gestão democrática, mas o anteprojeto
impõe uma gestão democrática e colegiada. Vou ser didático: a gestão pode
ser democrática, sem eleição direta e sem ser colegiada. O presidente da
República é eleito pelo voto direto, mas não governa de maneira colegiada:
indica pessoalmente seus ministros que podem ou não ser ouvidos para tomada
de decisão. Por que obrigar as universidades a ter uma gestão colegiada?
Por que impor eleições diretas com voto de funcionário administrativo e
aluno? No caso das federais, deixar o presidente escolher o reitor entre os
que constarem de uma lista sêxtupla ou tríplice é prática absolutamente
democrática, já que o presidente foi escolhido pelo povo. No caso das
privadas, a forma de administrá-la deve ser a que a mantenedora achar
conveniente.
O ministro diz que o artigo primeiro legitima a participação direta do
povo nas instituições. Essa expressão, que ele pôs entre aspas, não está na
Constituição. Ali, há apenas a referência de que o poder emana do povo, que
o exerce através de seus representantes eleitos (prefeitos, governadores,
presidente, vereadores, deputados, senadores) ou diretamente, por meio de
plebiscitos, na forma da Constituição. Nada a ver com eleição direta de
reitores em federais e de pró-reitores nas privadas.
No que diz respeito à colaboração da sociedade, o artigo 206 se refere
claramente ao ensino privado: a educação é um dever do Estado e da família
e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. Ou seja,
com a colaboração da iniciativa privada. Mesmo se o artigo se referisse a
conselhos, o que não é o caso, ele jamais poderia servir de base a órgãos
que visem a fiscalizar, mas apenas a promover e incentivar, coisas muito
diferentes. Da mesma forma, a Constituição reconhece que o ensino é livre à
iniciativa privada, atendido o cumprimento das normas gerais da educação
nacional. O ministro quer ver nisto o respaldo à limitação que o
anteprojeto faz ao ensino privado. Mas o artigo se refere apenas ao
respeito à lei, à norma, que deve ser consoante com o texto constitucional.
Isso nada tem a ver com submeter as universidades públicas e privadas às
políticas e planejamento públicos, pois estes são fruto das prioridades
que o governante do momento estabelece.
Por fim, não faz sentido a afirmação de que eu quero que as universidades
não se subordinem à Constituição. O que eu quero é que o MEC não a
desrespeite.
ALI KAMEL é jornalista.
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