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<div align="right"><font size=2><b>O Globo<br>
25 janeiro 2005 <br>
</font></div>
<div align="center"><font size=4><u>A Constituição, segundo Tarso<br>
</u></b></font></div>
<img src="http://oglobo.globo.com/jornal/opiniao/online/img/1x1.gif" width=1 height=1 alt="[]"></u></b><br>
<div align="right"><i>ALI KAMEL<br><br>
</i></div>
Depois de ler o artigo sobre reforma universitária do ministro da
Educação, Tarso Genro, em resposta ao meu, o sentimento foi de
frustração. Ele não negou o que escrevi, mas apenas se justificou: tudo o
que propusera teria respaldo na Constituição. Percebi que os problemas
eram então ainda mais agudos. Mas eles não residem em nossa Constituição
e sim na interpretação que o ministro dá a ela. Uma interpretação
descabida. <br><br>
Recapitulando o que escrevi: o anteprojeto é dirigista e levará a
universidade, pública e privada, à tutela do governo e de movimentos
sociais. As universidades terão de estar voltadas “especificamente” para
o desenvolvimento regional, segundo os interesses nacionais definidos
pelo governo. Serão criados conselhos comunitários sociais, compostos
“majoritariamente” por pessoas externas às universidades, ligadas a
entidades de fomento, de classe, sindicais e da sociedade civil. A esses
conselhos, caberá “examinar” o cumprimento das regras estabelecidas pelo
anteprojeto, e seus relatórios deverão ser levados “obrigatoriamente” em
conta pelo MEC. Isso atenta contra o espírito livre que deve reger a
ciência. <br><br>
O ministro disse que os artigos primeiro, terceiro e quarto da
Constituição respaldam o anteprojeto. Em nenhuma hipótese. A Constituição
tem um capítulo exclusivo dedicado à educação e outro à ciência. Os
artigos que o ministro cita não se referem àqueles capítulos, mas ao que
se intitula “dos princípios fundamentais”, que trata da definição do que
seja a República Federativa do Brasil e de seus valores. São aqueles que
estabelecem a união indissolúvel entre estados e municípios, formando um
estado democrático de direito, com princípios como a dignidade da pessoa
humana, pluralismo político, livre iniciativa. <br><br>
Ora, é absolutamente abusivo extrair desses princípios gerais relativos à
nossa República qualquer regra específica para toda e qualquer atividade
humana no Brasil, especialmente a educação, a quem os constituintes
dedicaram um capítulo à parte. A partir dos incisos segundo e terceiro do
artigo terceiro (são objetivos da República garantir o desenvolvimento
nacional e combater a desigualdade regional) não se pode, de maneira
nenhuma, decretar que as universidades públicas e privadas devam estar
voltadas “especificamente” para o desenvolvimento regional, segundo
interesses nacionais, determinados pelo governo. Isso atenta contra a
liberdade acadêmica e contraria o espírito livre que rege a busca do
conhecimento, que estão garantidos pela Constituição. <br><br>
Se o ministro estivesse certo, as liberdades de expressão, de informação,
de criação estariam também limitadas pelos interesses nacionais, e não
estão. Um artista pode fazer o filme que desejar, sem se preocupar com
mais nada senão com o seu compromisso de fazer arte. Um cientista deve,
como estabelece a Lei de Diretrizes e Base da Educação, estudar todos os
problemas do “mundo” e não apenas aqueles que o governo do momento
considerar prioritários. <br><br>
Exoticamente, para justificar a política de cotas raciais, o ministro usa
o artigo quarto, que trata exclusivamente dos princípios que devem
nortear nossas relações internacionais: entre outros, autodeterminação
dos povos, defesa da paz, repúdio ao terrorismo e ao racismo. O certo
seria usar o último inciso do artigo terceiro, aquele que repudia
qualquer discriminação com base em cor ou raça. Ele não o faz porque sabe
que este inciso dá bem a medida de como as cotas raciais são
inconstitucionais: discriminar alguém, mesmo positivamente, é algo que a
Constituição veda. <br><br>
O ministro também alega que os artigos 205 e 206 da Constituição, “não
somente determinam ‘a gestão democrática do ensino público’ mas também o
incentivo à ‘colaboração da sociedade’”. Diz isso para justificar, de um
lado, a obrigatoriedade de adoção de uma gestão colegiada, com eleições
diretas, e, de outro, a criação dos tais conselhos sociais, que tutelarão
as universidades. É um jogo de palavras. <br><br>
A Constituição fala de fato em “gestão democrática”, mas o anteprojeto
impõe uma “gestão democrática e colegiada”. Vou ser didático: a gestão
pode ser democrática, sem eleição direta e sem ser colegiada. O
presidente da República é eleito pelo voto direto, mas não governa de
maneira colegiada: indica pessoalmente seus ministros que podem ou não
ser ouvidos para tomada de decisão. Por que obrigar as universidades a
ter uma gestão colegiada? Por que impor eleições diretas com voto de
funcionário administrativo e aluno? No caso das federais, deixar o
presidente escolher o reitor entre os que constarem de uma lista sêxtupla
ou tríplice é prática absolutamente democrática, já que o presidente foi
escolhido pelo povo. No caso das privadas, a forma de administrá-la deve
ser a que a mantenedora achar conveniente. <br><br>
O ministro diz que o artigo primeiro legitima a “participação direta” do
povo nas instituições. Essa expressão, que ele pôs entre aspas, não está
na Constituição. Ali, há apenas a referência de que o poder emana do
povo, que o exerce através de seus representantes eleitos (prefeitos,
governadores, presidente, vereadores, deputados, senadores) ou
diretamente, por meio de plebiscitos, na forma da Constituição. Nada a
ver com eleição direta de reitores em federais e de pró-reitores nas
privadas. <br><br>
No que diz respeito à “colaboração da sociedade”, o artigo 206 se refere
claramente ao ensino privado: a educação é um dever do Estado e da
família e será “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”.
Ou seja, com a colaboração da iniciativa privada. Mesmo se o artigo se
referisse a conselhos, o que não é o caso, ele jamais poderia servir de
base a órgãos que visem a fiscalizar, mas apenas a promover e incentivar,
coisas muito diferentes. Da mesma forma, a Constituição reconhece que o
ensino é livre à iniciativa privada, atendido “o cumprimento das normas
gerais da educação nacional”. O ministro quer ver nisto o respaldo à
limitação que o anteprojeto faz ao ensino privado. Mas o artigo se refere
apenas ao respeito à lei, à norma, que deve ser consoante com o texto
constitucional. Isso nada tem a ver com submeter as universidades
públicas e privadas às “políticas e planejamento públicos”, pois estes
são fruto das prioridades que o governante do momento estabelece.
<br><br>
Por fim, não faz sentido a afirmação de que eu quero que as universidades
não se subordinem à Constituição. O que eu quero é que o MEC não a
desrespeite. <br><br>
<i>ALI KAMEL é jornalista.<br>
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