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Lilia Irmeli lilia at astro.ufrj.br
Fri Jan 16 16:56:50 BRST 2009


Falsa neutralidade

16/1/2009

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – A ciência e a tecnologia estão longe de ser
politicamente neutras e as novas descobertas não correspondem
necessariamente a progressos para a sociedade, segundo o professor
Fernando Tula Molina, da Universidade de Quilmes, na Argentina. Para
ele, embora façam parte do senso comum, as noções de neutralidade
científica e determinismo tecnológico representam obstáculo para uma
ciência democrática, capaz de melhorar a sociedade.

Ideias como essas foram expostas por Molina em nove sessões entre
agosto e dezembro de 2008, durante o 15º Seminário Internacional de
Filosofia e História da Ciência, realizado pelo Grupo de Filosofia,
História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Instituto de
Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo (USP).

O seminário foi um produto do Projeto Temático Gênese e significado da
tecnociência: relações entre ciência, tecnologia e sociedade,
Universidade de São Paulo, apoiado pela FAPESP e coordenado por Pablo
Rubén Mariconda, do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Doutor em filosofia pela Universidade de Buenos Aires, Molina
permaneceu no Brasil como professor convidado do projeto. No evento,
discutiu o tema "Controle, rumo e legitimidade das práticas
científicas".

Para avaliar as implicações científicas e sociais das práticas
tecnológicas, o professor propõe uma distinção entre a "eficácia" e a
"legitimidade" dessas práticas – e busca elementos conceituais para a
compreensão das origens culturais dessa distinção e da complexidade
dos diferentes atores envolvidos.

Segundo Molina, que também é pesquisador adjunto do Conselho Nacional
de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), na Argentina, "essa
compreensão contribuirá para que se encontrem os caminhos que levem ao
acordo requerido pelas políticas científicas nos espaços de diálogo
das instituições democráticas".

Agência FAPESP – Uma das idéias centrais desenvolvidas pelo senhor
durante o seminário realizado no mês passado em São Paulo é a de que a
ciência não pode ser dissociada da política. Como essa questão foi
tratada nos debates?
Fernando Tula Molina – As discussões tiveram origem em um Projeto
Temático apoiado pela FAPESP dirigido pelo professor Pablo Mariconda,
do Grupo de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da
Tecnologia do IEA, responsável pelo seminário. Esse projeto discute a
gênese e os significados da tecnociência. Isso envolve questões
históricas, filosóficas e sociológicas, mas no fundo tudo está virando
uma área importante ligada à política. Tentamos problematizar duas
idéias que hoje são muito fortes em nossa cultura: a neutralidade da
ciência e o determinismo tecnológico. Essas duas noções estabelecem no
imaginário popular uma idéia de que a ciência é neutra, desprovida de
política, quando, na verdade, a ciência – e sobretudo a tecnologia –
tem muita política.

Agência FAPESP – Como esse aspecto político se manifesta?
Molina – Uma das linhas que está sendo desenvolvida é que essa
política pode ser vista com clareza, por exemplo, no chamado código
técnico. Esse gravador digital que você está utilizando, por exemplo,
possui um design que encerra em si todo o contexto de sua concepção e
está ligado a determinadas estratégias. Essas estratégias representam
interesses – que, no caso de uma sociedade capitalista, correspondem
aos interesses das corporações. São interesses que têm a ver com o
consumismo tecnológico. O projeto do gravador já prevê quando ele
sairá de linha, isto é, carrega consigo uma estratégia de
obsolescência programada. Para que você consuma mais, é preciso que na
sua cabeça a aquisição de novos produtos tecnológicos seja entendida
como um progresso. Você acredita que está progredindo e tem um
aparelho melhor, de última tecnologia. Mas eventualmente os aparelhos
mais antigos tinham mais qualidade. Isso é pura política.

Agência FAPESP – Essa é a idéia do determinismo tecnológico? Uma
crença de que o produto que acaba de ser lançado é necessariamente
melhor, mais eficiente e mais desejável?
Molina – Sim. É uma estratégia de consumo que se baseia na novidade. O
produto é um bem cultural que se vale do valor simbólico que tem a
"eficácia" na nossa cultura, levando a pessoa a pensar que os produtos
desenvolvidos mais recentemente são melhores. Mas isso é uma falácia.
Outra falácia está no discurso político oficial dos nossos países: a
idéia de que o cientista pode dizer o que é melhor para a sociedade. O
cientista não sabe o que é melhor para a sociedade. Não existem nem
mesmo elementos conceituais para abordar essa questão. O seminário
teve, portanto, a tarefa central de instalar uma discussão e
conscientizar sobre alguns erros. Muitos desses erros, como o
individualismo, têm origem filosófica.

Agência FAPESP – Como o individualismo é tratado nessa discussão?
Molina – Quando a lógica predominante é a de que alguém só consegue
ganhar quando os demais perdem, o resultado é que as pessoas passam a
achar que podem ser livres apenas de portas fechadas. O que
gostaríamos de opor a essa idéia individualista é a possibilidade de
pensar que, ainda hoje, apesar das assimetrias e desigualdades do
capitalismo, podemos aprender a nos organizar de um jeito diferente e
reaprender a conviver. A convivência é o ponto central da política em
um sentido muito antigo, do qual já falava Sócrates. Como todos os
atores, tão diferentes, podem conseguir a felicidade e a plenitude no
meio de todos, no espaço restrito da pólis? A ideia de democracia que
está por trás do seminário é mais profunda que uma noção de igualdade:
é a ideia de que somos todos diferentes.

Agência FAPESP – Qual o efeito desse contexto dominado pelo
individualismo sobre o desenvolvimento tecnológico e científico?
Molina – Vamos tentar falar do conjunto ciência e tecnologia: a
tecnociência. Se as pessoas acreditam que o investimento em ciência e
tecnologia leva o país a crescer automaticamente, melhorando a vida da
população, temos o determinismo tecnológico. Nesse caso, já que o
resultado seria necessariamente bom para todos, o investimento poderia
ser feito sem preocupação com a participação da coletividade – esse
determinismo tecnológico é favorecido em um contexto individualista.

Agência FAPESP – Então, sem a participação da coletividade nas
decisões científicas e tecnológicas, os avanços do conhecimento não
chegam a beneficiar a sociedade?
Molina – Acho que é por isso que temos que combater o determinismo
tecnológico. Com essa lógica, o investimento não volta diretamente
para a população, mas para as corporações. Os investimentos públicos
formam técnicos, especialistas e recursos humanos para a universidade
e para o sistema tecnológico. Mas essas pessoas poderão desenvolver
tecnologias que melhorem as corporações, não necessariamente o país.
Se nossa sociedade tem base tecnológica e capitalista, mesmo que se
possa desenvolver a melhor tecnologia, ela irá se limitar a
desenvolver a tecnologia com melhor custo-benefício. Tudo o que está
envolvido com essas tecnologias será avaliado do ponto de vista
quantitativo, porque estará orientado pela produtividade. Incluindo as
relações com trabalhadores.

Agência FAPESP – Esse tipo de modelo tecnológico tenderia a agravar o
quadro de exclusão social?
Molina – Acredito que sim. A tecnologia orientada pela produtividade
só é acessível a quem tem determinado poder de consumo. As distâncias
sociais que deveriam ser diminuídas por conta da tecnologia começam a
aumentar. O crescimento das diferenças sociais agrava a violência. No
fim, a tecnologia, que poderia ter um papel de inclusão, acaba fazendo
o contrário.

Agência FAPESP – As tecnologias sociais seriam um possível caminho
para contornar esses problemas?
Molina – O Brasil tem uma rede muito boa de tecnologia social. Ela tem
700 organizações – a maioria organizações não-governamentais –, sendo
400 muito ativas. Todas pensam em confrontar essa idéia da tecnologia
capitalista associada à corporação. Nesse modelo fundamentado na
produtividade, não se pode acessar o conhecimento – que deve ser
patenteado. O usuário não é dono do meio onde essa tecnologia vai se
produzir e não se pode decidir para onde vai o benefício do
desenvolvimento.

Agência FAPESP – Essas tecnologias teriam então mais legitimidade?
Molina – As tecnologias sociais têm um papel importante na
democratização do conhecimento, mas elas não chegam a garantir a
legitimidade da forma como a entendemos. É preciso distingui-la da
eficácia. A tecnociência tem eficácia, mas não tem legitimidade
social. Esses dois conceitos muitas vezes são confundidos no próprio
discurso do desenvolvimento tecnológico, que está baseado na ideia de
controle. O que é o controle? Uma coisa é poder controlar a matéria ou
a partícula – como pode a nanotecnologia – no espaço e no tempo. Esse
é o controle científico, que é necessário e desejável. Mas não
suficiente. Outra coisa é poder dar legitimidade a esse controle.

Agência FAPESP – E como dar mais legitimidade ao controle das práticas
científicas?
Molina – Para mim, a legitimidade não está no conteúdo das decisões
sobre os rumos tecnológicos, mas no jeito como essas decisões são
tomadas. Se a decisão foi tomada de maneira coletiva e democrática e
daí gerou os rumos e decisões, isso a legitima, não pelo conteúdo, mas
pela forma coletiva. O que temos que pensar é quais são os atores em
cada âmbito que deveriam participar democraticamente, sendo
reconhecidos como diferentes e igualmente importantes, do rumo mais
democrático da enorme capacidade tecnológica que já temos. Mas se não
conseguimos dar a isso um caráter democrático, então o rumo será
tecnocrático e corporativo. A responsabilidade é nossa. A
palavra-chave é participação.

Agência FAPESP – Há propostas para melhorar essa participação?
Molina – O controle tecnológico, voltado para o controle da matéria no
espaço e no tempo, não tem, em si, nenhuma legitimidade. Propomos dois
novos eixos para pensar essa legitimidade: o tempo da educação e o
espaço da participação política. Para melhorar essa participação,
temos que gerar um espaço de protagonismo social em que os outros
atores possam interagir com os cientistas. O especialista tem uma
função consultiva importante, um compromisso de indicar as
possibilidades, mas não a prerrogativa de ditar os rumos. Com a ajuda
dele, o leigo poderia ter a possibilidade democrática de decidir o
futuro. Mas isso não acontece. Na nossa organização estamos excluídos
de todas as decisões tecnológicas. Não temos o espaço da participação
política.

Agência FAPESP – E quanto ao tempo da educação?
Molina – Levamos tempo para educar alguém a ser crítico com a
tecnologia e a conhecer sua própria capacidade de decisão e sua
autonomia de criatividade. Essa é a dimensão do tempo da educação.
Temos que introduzir essa discussão na escola inicial, porque ali as
crianças já têm celular, videogames e muitas possibilidades
tecnológicas. Seria importante começar a combater cedo a idéia
introjetada de que a ciência é apolítica. Ao superar as idéias de
neutralidade e determinismo do desenvolvimento tecnocientífico, só nos
restará a possibilidade de um desenvolvimento político, democrático,
com participação cidadã. Mas esse cidadão crítico ainda não existe,
daí a importância dessa dimensão da educação.

Agência FAPESP – Ainda estamos muito distantes da formação desse
cidadão crítico?
Molina – Talvez nem tanto. Podemos pensar no que aconteceu com a
cultura ecológica. As crianças e as novas gerações já colocam o
problema ecológico de forma mais prioritária. Isso ocorreu, entre
outros fatores, porque a ecologia começou a ser apresentada às
crianças de forma muito forte, desde a escola inicial. Acho que
poderia acontecer o mesmo com o problema tecnológico. Para isso temos
que começar a refletir com mais clareza sobre lixo tecnológico,
obsolescência planejada, qualidade tecnológica, durabilidade,
tecnologias para o futuro, tecnologias sustentáveis, tecnologias
adequadas aos problemas – e não apenas ao consumo em massa – e
tecnologias customizadas, que não impõem uma única solução, como se
fôssemos todos iguais.




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