<html>
<body>
<font size=3><br><br>
</font><div align="right"><font size=1>17 de maio de
2011</font><font size=3> <br>
<img src="http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/images/saopau.gif" width=217 height=36 alt="[]">
<br>
<img src="http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/images/spbar.gif" width=500 height=1 alt="[]">
<br><br>
<br>
</font></div>
<div align="center"><font size=4 color="#000080"><b>RUBEM ALVES <br><br>
</font><font size=6>Esquecer para saber <br><br>
<br><br>
</font></div>
<font size=3><i>Quem lhe ensinara isso, essa estranha pedagogia da
desaprendizagem? Não podia ter sido Barthes...<br><br>
<br>
</i></b>A MENINA me disse que eu teria de esquecer o que sabia para poder
ver aquilo que eu não via... Que menina? Aquela sobre quem escrevi.
Caminhávamos juntos, ela me mostrava e me explicava a sua escola, na Vila
das Aves, em Portugal. Eu teria de esquecer para poder ver... Quem lhe
ensinara isso, essa estranha pedagogia da desaprendizagem? Não podia ter
sido Roland Barthes...<br><br>
Barthes, ao sentir a velhice chegando, disse esta coisa surpreendente:
que chegara a sua hora suprema, a hora do esquecimento, tempo de
desaprender os saberes que havia aprendido. Posso imaginar o espanto que
essa declaração deve ter provocado no erudito público acadêmico presente
a sua aula.<br><br>
Esquecer, desaprender: são o oposto daquilo que as escolas e professores
pedem aos alunos. Os professores perguntam e os alunos, se tiverem
memória boa, respondem e tiram boas notas... Esquecer é o contrário:
perder, abrir mão, deixar ir. E, na lógica banal da razão do cotidiano,
esquecimento é sempre empobrecimento. Barthes aponta na direção oposta.
Teria ficado senil?<br>
Quem responde é o poeta T. S. Eliot, num curtíssimo-cortante aforismo:
"Num país de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece
estar fugindo".<br><br>
Barthes caminha na direção contrária. Ele nos conduz a um outro mundo.
Suspeito que ele tenha aprendido do Taoismo. Pois é isso que está lá
dito, no poema de número 48 do "Tao-Te-Ching": "Na busca
do conhecimento a cada dia se soma algo. Na busca do Caminho da Vida a
cada dia se diminui algo".<br><br>
Esquecer é diminuir; desaprender é diminuir. Barthes não está sozinho em
sua caminhada na direção contrária. Lichtenberg tinha uma ideia parecida:
"Atualmente procura-se divulgar a sabedoria por toda a parte: quem
sabe se daqui a poucos séculos não haverá universidades destinadas a
restabelecer a antiga ignorância?".<br><br>
Alberto Caeiro é de opinião semelhante. "O essencial é saber ver -
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um
estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender..." "Procuro
despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser
eu..."<br><br>
Barthes se referiu ao esquecimento como "a força da força
viva". Por quê? Ele mesmo responde, mostrando que o esquecimento é
um processo pelo qual o corpo "raspa" de sua pele as
sedimentações operadas pelo passado, mortas, da mesma forma como o
navegador raspa a craca marisca que grudou no casco do seu barco. Raspada
a craca, o barco rejuvenesce.<br><br>
Encantam-me os eucaliptos velhos, suas cascas duras, rugosas, grossas,
escuras, rachadas. Repentinamente elas se soltam: debaixo delas surge um
eucalipto rejuvenescido, casca verde-creme, lisa, sobre ela a mão desliza
com prazer. Nós, humanos, para renascer, temos de esquecer -abandonar a
casca velha para que a nova apareça. As cascas vazias das cigarras presas
aos troncos das árvores são um passado subterrâneo que teve de ser
abandonado para que o ser voante nascesse. Esse é o caminho da
educação...<br><br>
Mas a menina me fez pensar outros pensamentos que eu nunca tinha pensado.
Eu os guardo para depois...<br><br>
<br><br>
<br><br>
<br><br>
=<br>
=<br><br>
=<br><br>
<br>
= </font></body>
</html>