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<html>
<head>
</head>
<body bgcolor="#ffffff" text="#000000">
<b><font color="#000080" size="+1"><br>
</font></b><font size="1">Folha de São Paulo, 03 de janeiro de 2010</font>
<br>
<b><font color="#000080" size="+1">+Marcelo Leite</font></b><br>
<font size="5"><b>L.I.X.O.<br>
</b></font><b><i>Físico egípcio descobre como pôr a estatística a
serviço de si mesmo</i></b><br>
<font size="5"><b></b></font><br>
<table width="250">
  <tbody>
    <tr>
      <td><b><i></i></b><br>
      </td>
    </tr>
  </tbody>
</table>
<br>
<br>
Falta ao Brasil um cientista tão empreendedor quanto Mohamed El
Naschie. O físico egípcio, que se apresenta como conselheiro do
Ministério de Ciência e Tecnologia de seu país, embora more no Reino
Unido, fez uma descoberta sensacional: como pôr a estatística a serviço
do homem comum (no caso, ele mesmo). Por ora, sua descoberta só foi
aplicada num campo específico da matemática aplicada, a cienciometria,
disciplina estatística que emprega métodos quantitativos confiáveis
para medir a produtividade de cada instituição de pesquisa, periódico
científico ou cientista individual. Até agora ela só fazia a fortuna de
conglomerados de informação, como a empresa Thomson Reuters-ISI. <br>
Se fosse brasileiro, El Naschie teria um currículo Lattes de cair o
queixo. Produziu quatro centenas de artigos publicados em periódicos
especializados acompanhados (indexados) pela ISI Web of Science, uma
base de dados da Thomson Reuters que permite esmiuçar a vida acadêmica
de qualquer pesquisador expressivo. Seus trabalhos já foram citados
umas 5.000 vezes, indicador forte do impacto que os estudos tiveram na
comunidade científica internacional. <br>
El Naschie fundou e editou durante anos o periódico "Chaos, Solitons
and Fractals" (CSF). Entre as 65 publicações da categoria Aplicações
Interdisciplinares de Matemática classificadas pela Thomson-Reuters,
"CSF" ocupava a segunda posição em 2007. Há alguns problemas com a
produção do egípcio, no entanto. Nos últimos anos, seus adversários se
deram conta de que mais de 300 dos 400 artigos publicados por El
Naschie o foram no próprio "CSF" por ele editado. A denúncia está na
edição de dezembro do boletim "Siam News", da Sociedade de Matemática
Industrial e Aplicada, com sede em Filadélfia (EUA). <br>
Há mais. Das 4.992 citações obtidas pelo físico, cerca de 2.000 são de
trabalhos editados no mesmo "CSF", boa parte deles de autoria do
próprio El Naschie. A autocitação é um expediente comum em ciência, mas
em geral condenado como uma forma artificial e antiética de melhorar as
próprias estatísticas de produtividade. Acha pouco? Fique sabendo então
que El Naschie tem estreita colaboração com Ji-Huan He, da Universidade
Donghua de Xangai. He, que também atua como editor do "CSF", fundou em
2000 o periódico "International Journal of Nonlinear Science and
Numerical Simulation" (IJNSNS). O "IJNSNS" tem em seu corpo de
editores, claro, o colega egípcio. Nesta altura o leitor perspicaz já
terá adivinhado que He e El Naschie publicam copiosamente nos
periódicos um do outro. Também abundam as trocas de citações, uma
colaboração científica de resultados inquestionáveis. <br>
He e o "IJNSNS" patrocinaram uma reunião científica na Universidade
Donghua, lê-se no "Siam News". Os anais do encontro foram publicados no
periódico "Journal of Physics: Conference Series" (JPCS), que não se
responsabiliza pela verificação ("peer review") da qualidade dos
trabalhos. A reunião de He na Donghua ocupou um volume inteiro do JPCS,
em 2008, com 221 artigos. Neles se encontram 366 citações a outros
artigos do "IJNSNS" e 353 referências a He. <br>
Alguém devia abrir um Laboratório Interdisciplinar de Xenotransplantes
e Ozonoterapia no Brasil. Ou, quem sabe, obter financiamento público
para editar um periódico intitulado "Brazilian Library of Advanced
Biotechnology, Laboratory Agrosciences and Biomolecular Low-cost
Analysis". Fariam o maior sucesso -bastando não usar as siglas na
publicação dos milhares de estudos que produzirão.<br>
<br>
<br>
<font size="1">Folha de São Paulo, 10 de janeiro de 2010</font>
<br>
<b><font color="#000080" size="+1">+Marcelo Leite</font></b><br>
<font size="5"><b>Fenômeno editorial </b></font><br>
<b><i>Não é a primeira vez que a Elsevier se enrola com denúncias de
falhas</i></b><br>
<br>
O verdadeiro fenômeno da blogosfera não são os próprios blogs, mas os
comentários que os leitores deixam neles. É cada uma...<br>
A coluna da semana passada, "L.I.X.O.", sobre a portentosa
produtividade do egípcio Mohamed El Naschie, teve trechos reproduzidos
no blog Ciência em Dia. Apenas o suficiente para dar uma ideia da
controvérsia sobre centenas de artigos e milhares de citações do
pesquisador, boa parte no periódico de matemática aplicada editado por
ele mesmo, "Chaos, Solitons and Fractals" (CSF). <br>
E não é que houve gente saindo em sua defesa? Em lugar de ponderar as
informações objetivas publicadas sobre as práticas de El Naschie, um
leitor encontrou na blogosfera -e comprou por seu valor de face (zero)-
uma teoria conspiratória: o egípcio seria vítima de pessoas acusadas de
plagiar artigos do próprio El Naschie.<br>
De fato existiu uma acusação de plágio, envolvendo artigo na revista de
divulgação científica "Scientific American". É um rolo longo demais
para desenrolar aqui. Além disso, em nada afeta os prodígios editoriais
de El Naschie à frente do periódico "CSF". <br>
Importa é saber que a casa editora de "CSF", o famoso conglomerado
holandês Elsevier, desembarcou El Naschie. Decerto identificou coisas
estranhas no periódico por ele fundado, mas do qual "se aposentou",
segundo informa laconicamente a companhia.<br>
A economia de palavras pela
Elsevier faz suspeitar que tenha sido processada por El Naschie. Assim
ocorreu com a revista britânica "Nature" e o jornal alemão "Die Zeit",
que relataram o milagre da multiplicação das citações ("CSF" tem um
fator de impacto 3, ou seja, em média cada artigo seu termina citado
três vezes por outros trabalhos, um índice muito bom). <br>
A empresa não encontrou ainda um novo editor para "CSF". Suspendeu
temporariamente a recepção de novos artigos para "peer review"
(auditoria de qualidade por outros pesquisadores que é tradição em
publicações científicas). Apesar disso, a Elsevier continua cobrando
4.204 euros -mais de R$ 10 mil- da biblioteca que assinar a revista. <br>
Não se trata de crucificar a Elsevier, "uma comunidade global de 7.000
editores de periódicos científicos, 70 mil membros de conselhos
editoriais, 300 mil revisores e 600 mil autores" (como se apresenta na
internet). Não deve mesmo ser fácil manter controle sobre 2.000
periódicos, entre eles muitos de renome inconteste, como "Cell" (fator
de impacto 30). <br>
A Elsevier também se vangloria de promover o mecanismo de "peer review"
por 125 anos. Ora, tal sistema existe justamente para garantir a
qualidade e a honestidade das pesquisas publicadas. Basta um "CSF" para
deixar sob suspeita todo o acervo, assim como uma laranja podre pode
pôr a caixa inteira a perder. <br>
Não é a primeira vez que a editora se vê enrolada em denúncias de
falhas graves no controle de qualidade. Em maio passado, a Elsevier
reconheceu em nota que sua filial australiana havia publicado nada
menos que seis periódicos científicos falsos, todos com títulos
começando por "Australasian Journal of...". <br>
Em realidade, eram compilações de artigos não inéditos patrocinadas
pela empresa farmacêutica Merck (não por coincidência, favoráveis a
produtos seus). O patrocínio não vinha explicitado nas publicações,
editadas com aparência de periódicos médicos de verdade.<br>
Um leitor mais afoito de blogs poderia concluir dos dois casos que a
Elsevier faz parte de um complô para pôr sob suspeita toda a literatura
científica. Para variar, estaria errado.<br>
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</html>